Crítica | Cowboy Bebop - A Porto Alegre do Espaço

Desventuras em um Espaço largado

Porto Alegre é uma bagunça em forma de cidade, e é talvez o melhor jeito (que eu tenho) de descrever o mundo criado por Shinichiro Watanabe.

De um lado temos o Moinhos de Vento, um bairro que parece ter sido desenhado com uma mistura perfeita de planejamento e espontaneidade, arborizado e vibrante com vida. Do outro, a Voluntários e a Azenha, ruas que não importa o quanto o resto da cidade evolua, permanecerão do mesmo jeito. Cantos esquecidos, com prédios que já nasceram com um passado de abandono e descaso, jamais sugerindo uma humanidade que hoje passeia pelo sistema solar.

E o pior é que, embora volta e meia se aventurem por lugares melhores, Spike, Jet, Faye e Ed possuem dentro de si esse espírito que rege as periferias comerciais do mundo - que, em Cowboy Bebop, consiste em vários. Uma sensação de não pertencimento, de uma mudança constante para o mesmo que antes, de falta de perspectiva e preguiça de lidar com o passado que ainda é presente.

No caso de Spike, isso é mais visível. Constantemente suspirando, olhando pro nada, dormindo, fumando, esse espírito se reflete na sua postura, enquanto Jet, apesar de mais animado, recusa com mais intensidade seu próprio passado, um que o deixou mais marcado (o braço robô) do que Spike, ao passo que Faye termina por descobrir que o seu próprio passado nada de interessante lhe oferece, em um dos momentos mais complexos e reveladores de toda a série. Ed é talvez o contentamento, uma menina (ou menino) do futuro que vive de informação e entretenimento, jamais delegando tempo à emoções ou complicações humanas. Ela apenas vive.

Então é óbvio que a maior parte de suas aventuras serão em cantos abandonados de um espaço já colonizado a tempo o suficiente para que não haja novidade e sim um conhecimento prévio de seus becos e mazelas. Os bares noturnos em cidades onde mulheres não existem mais - o maior anúncio de terror para uma espécie -, a colônia fantasma onde a ex de Jet mora, a Terra com uma tempestade infinita de meteoros que não permite que mapas sejam feitos e casas sejam fixadas, o parque de diversões macabro que parece vir de uma creepypasta. As cores pastel (que saudade de quando os Animes não tentavam ser brilhosos pra chamar atenção das crianças) entregam ainda mais esse abandono, e caso não seja óbvio, mesmo as espaçonaves e celulares altamente tecnológicos parecem pedaços de sucata com rachaduras e ferrugem de enfeite.

Mas claro, tudo isso é anunciado já no título: os filmes de Cowboy no qual a série é inspirada já mostravam esses mundos de um passado eterno, de John Ford à Sergio Leone, ao passo que não há música melhor para preencher um canto de bar vazio do que o Jazz. Se pensarmos, ambos são quase extremos, um é símbolo do conservadorismo norte-americano e seu apreço por valores do passado, outro tem contornos de movimento, criado por músicos negros e onde a liberdade e rebeldia das composições refletem as lutas que travaram pelos direitos civis. Juntos, essas duas estéticas ainda se apropriam do sci-fi e criam não um gênero novo, como Watanabe se referiu inicialmente, mas uma grande mistura que jamais vira uma coisa só.

No fim, Cowboy Bebop é o que é, tendo seu charme justamente no que divide cada um de seus componentes.

O episódio do culto online brinca de Evangelion, o do Cowboy de Toy Story, o do assassino (apesar de propositalmente tosco, é cagante) de um Noir bem carregado com toques de Batman em seus vilões, em uma segunda metade que acaba sendo mais forte do que a primeira talvez porque já haja um investimento emocional por passarmos tanto tempo existindo com aqueles personagens, mas também por se permitir investir de maneira mais pesada nesses gêneros e temas singulares. Inclusive, o tempo é tão dosado que é como se os 24 minutos de cada episódio valessem por horas, puxando talvez um pouco de 2001 e Solaris, em como usam o tempo como uma espécie de poesia. Uma encenação livre (conseguir fazer isso com animação não é pouca coisa) que, na batida da rotina, acaba criando uma narrativa muito mais forte que qualquer premissa mais tradicional conseguiria.

O curioso é como consegue dar essa sensação de vazio existencial sem nunca verbalizar isso se não com a dinâmica cansada do quarteto. Assim como as periferias que mostra, Cowboy Bebop se faz profundo pelo que está a espreita e não diretamente na tela. Justamente por cada episódio ter praticamente uma história isolada, é que a não importância desses momentos podem ser sentidas perante o todo, fazendo valer o investimento no agora desde que esse entretenha. E embora passasse entediado por muitas das tramas isoladas, nos momentos de maior introspecção é difícil não sentir. Quando Faye volta e Spike encara ela com o olho falso, ele fala talvez a melhor frase da série inteira: não vou lá pra morrer, vou lá pra ver se ainda estou vivo.

Na Voluntários do espaço, os dias passam e aprendemos a evitar o passado, mas é só quando o confrontamos que podemos voltar a viver a vida que temos no presente. Até lá, somos como cowboys no espaço, vagando por aí.

9


Ps.: Claro que a série em si foi baseada em Japão, Estados Unidos e China, mas olhe de perto e você pode ver o seu próprio bairro ali.

Pss.: Tentei por um bom tempo dissecar o apelo da abertura, que está longe de ser visualmente tão interessante como a música maravilhosa que toca, mas… não consigo! É uma anomalia que faz o botão de pular da Netflix um vilão ainda maior.

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