Crítica | First Cow
Talvez um dos filmes mais afetados pela pandemia, “First Cow” ainda nem tem título brasileiro, ou data de estreia, mas fez barulho no circuito de festivais e deve aparecer na temporada de premiações. Mais importante que isso, é um filme que deveria valer o seu tempo, mas tenho plena consciência que, definitivamente, não é para todo mundo.
Baseado no livro de Jonathan Raymond, que assina o roteiro junto à diretora Kelly Reichardt, o filme tem início no tempo presente, quando uma jovem encontra dois esqueletos enterrados em uma área florestal. Qualquer desavisado (eu) acharia que um mistério estaria em mãos, mas logo o filme volta 200 anos no passado onde conhecemos o padeiro Otis Figowitz e o imigrante chinês King-Lu, ambos procurando riquezas nos rios do Oregon, antes um território disputado no final dos Estados Unidos. Logo, eles descobrem que os biscoitos de Figowitz, apelidado Cookie, são um grande sucesso no vilarejo, mas para fazê-los eles tem que roubar o leite da vaca de Chief Factor, um ricaço inglês que detém a única casa de “verdade” da região.
E é isso, a história de “First Cow” é simples e direta, o que torna ainda mais fascinante quando percebemos o grau de complexidade provocado pela narrativa.
Traçando um paralelo claro quanto ao “início” do capitalismo na América e mostrando uma porção talvez esquecida de sua história que termina por resumir a forma como nossa sociedade se formou, o filme de Reichardt jamais se preocupa em se fazer atraente para o espectador. Com uma razão de espectro reduzida, que curiosamente não nos impede de imergir por completo naquele fim de mundo, Reichardt constrói, com o diretor de fotografia Christopher Blauvelt, um filme visualmente impecável, com enquadramentos que não apenas revelam detalhes de sua história e expressões reveladoras de seus personagens, mas realçam o musgo que cresce nas paredes improvisadas de madeira e o melancólico cinza, que parece tomar conta da região. A própria trilha sonora se inicia com uma melodia pesarosa e anunciante do que estamos prestes a assistir, mas se ausenta pela maior parte da projeção - retornando apenas no final com composições caóticas -, algo que nos permite mergulhar ainda mais na época devido ao design de som, digno de prêmio e que nos faz ouvir desde o ranger de dentes ao barulho provocado por dedos escavando a lama.
Mas mesmo acompanhando personagens miseráveis, que vivem do que encontram em uma floresta já pisoteada, não chego a considerar “First Cow” um filme “triste”, pois há um certo afeto na maneira como a diretora retrata a jornada de seus protagonistas. Interpretado por John Magaro como um homem bom, pacífico e afetuoso até com a vaca a qual extrai leite, Cookie desperta nossa empatia desde o começo, quando oferece abrigo à King-Lu sem conhecê-lo, e graças a seu jeito tímido e acanhado de falar e agir. Já Orion Lee dá vida a um homem ambicioso, mais culto e que, desconfio, mente para si mesmo com relação à própria situação, a considerando passageira e não sintomática da vida que levou. A amizade que se cria entre os dois é palpável e sincera, e por conta de ambos a cineasta é capaz de traçar seu principal comentário moral na obra.
Veja, apesar de estarem apenas tentando sobreviver, os dois precisam roubar o leite de uma vaca, o que enfurece o polido Chief Factor (interpretado de maneira convincente, quase irônica por Toby Jones) e o faz perseguí-los. De certa forma, ele está agindo de acordo com o que a época chamaria de justiça, afinal a vaca é sua propriedade. Mas jamais condenamos a dupla, pois sabemos que, devido ao velado sistema de castas provocado pelo capitalismo, ambos, ou seus filhos e netos, jamais teriam qualquer condição de vencer na vida sem alguma atitude parecida e a distância deles, miseráveis mercadores para alguém como Factor, apenas aumentaria nos próximos 200 anos. Não deixa de ser pungente, também, como Reichardt não dá sequer uma fala para qualquer mulher na projeção (a intérprete indígena apenas traduz e, quando conversa com a amiga em seu dialeto, não temos o acompanhamento de legendas), pois se homens como Cookie e Lu já eram subjugados por não serem mais do que eram, as mulheres nem ao menos poderiam ser encontradas em um mundo como aquele.
A cineasta acaba falhando apenas em provocar tensão, que se dá mais pelo fato de sabermos que algo aconteceu àqueles dois homens do que pela forma como aconteceu. Após um diálogo, que vocês sabem/saberão qual é, se torna possível prever todo o ato final do longa, algo que lhe faz perder quase todo seu impacto.
Feito para ser visto no cinema, o modo como o filme se arrasta deve tirar sua concentração facilmente caso seja conferido em casa, mas apesar de não ser agradável, ou de lhe dar vontade de assistí-lo novamente (eu provavelmente não irei), são duas horas marcantes, ricas em linguagem, emoções e narrativas, finalizadas com um belo, mas aterrorizante plano final que rima com sua sequência inicial de maneira que toda a experiência se torna ainda mais fascinante. Além de revelar a habilidade de Reichardt em criar personagens complexos (e que denotam os efeitos causados por aquela semi-vida) sem que esses profiram uma única palavra durante duas horas.