Crítica | Cenas de Um Casamento
“Cenas de Um Casamento” não precisava de uma atualização, mas A arte nunca é precisa.
A refilmagem acerta em não procurar respostas para a separação, mas sim em entender de onde vem as perguntas que nos levam a ela e de buscar compreender a fronteira que separa - e une - a arte e a vida.
Diferente de boa parte dos meus colegas, sou um profundo admirador da ideia de refazer uma obra de décadas passadas e atualizá-la para o nosso tempo. Algo que não apenas serve como ótima maneira de trazê-la de volta a vida, mas de analisar como o mundo e as pessoas mudaram desde seu lançamento.
Logo, quando descobri que a obra prima de Ingmar Bergman seria refeita pela HBO, com Oscar Isaac e Jessica Chastain (dois dos meus atores favoritos de hoje em dia), não poderia ter ficado mais “animado”. Porque vejam, como alguém que não lembra da separação dos pais (minha memória mais antiga é do dia que meu pai saiu de casa, quando eu tinha menos de dois anos), talvez algo no subconsciente me faça querer desvendar o que poderia ter acontecido. Logo, filmes como “O Desprezo”, “A Noite”, “A Separação”, “Blue Valentine” e “Histórias de Um Casamento” encontram um lugar especial no meu coração. Por mais que doam, revelam partes de uma verdade que nunca conhecerei de verdade.
Embora toda obra deva funcionar por si própria, sinto como se as decisões feitas aqui revelassem novas possibilidades quando comparadas com a versão de 74. Apesar de seguir os principais acontecimentos, as intenções de Hagai Levi, diretor e co-roteirista (ao lado de Amy Herzog, nada a ver com Werner), se tornam evidentes: essa versão, que surge após o filme de Bergman ser utilizado como principal referência do tema no Cinema, sugere que os motivos, apesar de impossíveis de se traçar completamente, seguem os mesmos, o que se inverteu foram os papéis de homem e mulher na relação e, claro, na sociedade. Ou ao menos o filme acentua algo que ainda não é maioria, mas se torna cada vez mais comum: é Mira a principal provedora e quem trabalha fora de casa, enquanto Jonathan passa a maior parte do tempo com a filha.
E saber o que acontece na versão de Bergman gera uma antecipação que conversa com a abordagem de Levi, que se difere e muito da original. Se naquele filme os planos eram fechados e espacialmente limitantes, nesse a câmera passeia constantemente pelos aposentos da casa - praticamente o único cenário - enquanto segue os dois, e mesmo quando ambos estão parados ela continua a se mexer, como que procurando expressões, gestos e mudanças sutis nos atores enquanto estes conversam. A impressão é que cada minuto em tela equivale a 10 do mundo real, e uma conversa de 20 minutos soa como uma noite inteira de discussões. De um suspiro a um deboche, cada detalhe se torna algo capaz de mudar completamente o rumo da conversa, e por saber o que, em tese, irá acontecer, essa instabilidade gera ainda mais ansiedade, pois nunca há um ponto em que se conhece o suficiente daqueles dois para sequer imaginar como eles irão reagir. Algo que encontra uma rima quase sádica no primeiro episódio, quando os dois testemunham a briga do casal de amigos e não sabem bem o que fazer. A partir dali, seria a nossa vez.
Apesar de ter a estilização como uma força característica e abrangente, é uma versão que se baseia no realismo, desde as performances - Liv Ullman e Erland Josephson tinham uma meiguice quase caricatural - às cenas de sexo, que fogem quase por completo de qualquer olhar voyeurístico. A câmera pode tornar tudo mais envolvente, mas o acontecimento jamais ocorre por si, e sim como mais um elemento das discussões realizadas pelo casal e, vez que outra, como arma para ferir o outro. Até acho que a sexualidade de Mira - e feminina, num geral - poderia ser mais explorada pela dinâmica, ou mesmo as origens Judaicas de Jonathan como um empecilho emocional no início de sua vida adulta, mas parece que o objetivo eram os dois, suas individualidades apenas quando confrontadas pela do outro.
Levi cria também algo que não chega a ser um distanciamento (afinal os vemos em vulnerável intimidade), mas ao mostrar tomadas externas da casa após o fim de cada episódio, e ao iniciá-los com imagens dos bastidores, o diretor proporciona uma separação metafísica quase Kiarostâmica entre público e casal. Nunca vemos por eles, mas sim eles. Nunca somos nós, e sim um filme, algo que se mostra justificável com a última cena, que comento mais abaixo, e que ressignifica toda a experiência.
A casa, por sua vez, é usada primeiro como prisão e depois refúgio, se tornando um quarto componente - além dos dois e da filha - como se tudo que acontecesse estivesse a ela atrelado. Com isso, Levi imprime algo que me lembrou Christian Petzold e seu brilhante “Trânsito”, um filme sobre como as pessoas estão sempre entre o ir e vir, nunca o ficar. Vários elementos reforçam essa ideia, desde o simples jogo de entrar e sair, ao jantar religioso que não foi feito para ela, mas sobrou, à bebida de abacaxi que tomam em um copo descartável. Vemos sempre a transição, a mudança, são os personagens que tem de encarar a estagnação, sozinhos. Logo fica claro que é de Jonathan que Mira não consegue se desfazer, e mesmo quando a casa se torna algo ainda mais passageiro - a noite no AirBNB -, ela segue retornando para o homem que ama e ele a recebe com a certeza de que sairá ainda mais machucado após ela partir.
Assim, a violência - também invertida - soa menos trágica e mais inevitável, como último recurso de Mira de impedir que seu porto seguro desapareça por completo, como se para viver a vida que escolheu ela precise que Jonathan continue lá, a esperando. Ele, nessa versão, parece ser uma pessoa “melhor” que ela, mais compreensiva, mas os impulsos e instabilidades de Mira a tornam apenas mais humana, e a maneira como Chastain parece rejuvenescer (de maneira “negativa”) anos quando perde o controle é algo que poderia soar desesperador, mas surge como uma forma doce de entendermos tudo o que sente. Isaac, por sua vez, esconde tudo por trás da barba e óculos - o jogo de luzes constantemente coloca seu rosto sob sombras, como tentando nos fazer duvidar se é realmente uma boa pessoa -, e parece calcular e articular tudo o que diz, mas sem jamais soar pedante, manipulador ou pior, desonesto consigo mesmo.
Diferentemente da original, não acho que sejamos convidados a escolher um dos lados (considero impossível não simpatizar mais com Marianne, mesmo que a figura trágica de Jonah inspire uma pena carinhosa), mas num geral parece que o julgamento moral se faz mais forte em Mira, pelo menos na minha perspectiva. Sendo isso algo que a própria Chastain comentou, em uma incrível entrevista ao lado de Liv Ullman, sobre como alguns detalhes sutis podem passar batido da visão masculina, como Isaac propositalmente afastar a filha da mãe (na cena da entrevista e em outros momentos), protegendo a área da vida onde é mais bem sucedido que a mulher.
E embora a série seja feita para inspirar debates, como foi a primeira, acredito que chame menos atenção pela inversão de gêneros, e mais nos comentários que faz sobre sexualidade e fidelidade. Podemos julgar Mira por trair e deixar o marido, mas quando ambos se tornam infiéis acho difícil alguém não “torcer” por seu amor - quando ele entra no carro é difícil não esboçar um sorriso -, mesmo que ele venha como forma de dor e decepção para seus novos parceiros, jogando então para nós um julgamento falho por conhecermos apenas seus lados da história. Ou melhor, pelo que achamos saber, pois o que esta versão de “Cenas de um Casamento” deixa claro, é que raramente temos certeza de qualquer coisa.
Por isso, é lindo a maneira como essa versão compreende o mesmo que a série que a inspirou. No meio da noite, em uma casa escura, em algum lugar do mundo, Mira repete à Jonathan o que Jonah diz à Marianne, quando esta teme não ser capaz de amar:
"Você me ama do seu jeito e eu te amo do meu jeito".
Ao reconhecer que ouviu isso de um filme, e ao andar de mãos dadas com Isaac após encerrarem sua última cena juntos em um projeto tão pessoal, Chastain, e obviamente Levi, constatam o poder transformador da Arte, capaz de inspirar gerações sem jamais romper a barreira da tela.