Crítica | Suspiria
Remakes- assim como corpos - são armas potentes no cinema se usadas da maneira certa.
Na mão de Luca Guadagnino, “Suspiria” deixa de ter o corpo como alvo, e o adota como linguagem.
Sendo apenas seu segundo filme que assisto fica evidente, com “Me Chame Pelo Seu Nome” e essa releitura do clássico de 77 de Dario Argento, que Guadagnino é um cineasta obcecado com o poder do corpo. Tanto em suas características e finalidades, como em sua poesia: é um Cinema que louva essa prisão, falha e limitada, na qual nossas mentes, expansivas e ilimitadas, estão destinadas a viver até o fim - pelo menos, dependendo das suas crenças e do que se sabe cientificamente. Se naquele romance o corpo surge como objeto de desejo e ao atingi-lo se configura a descoberta, nesse terror há menos dúvidas e sugestões, mas sim uma ciência sinistra que dá sentido ao sub-gênero (body horror).
Existindo quase em uma dimensão paralela à do Giallo de Argento, a estilização que lá era a força aqui se torna quase um pecado. Há uma influência cara do Expressionismo, há uma carga imagética, mas as cores são sugadas, os cenários recebem pouco ou nenhum cuidado, mesmo os figurinos surgem apenas como uma necessidade social de cobrir o corpo. Mais que isso, o corte elimina o deslumbre, cenas alternam entre três, quatro planos distintos que tiram nossa atenção dos atos, com a câmera nunca parando para que os elementos configurem qualquer atmosfera mais complexa e profunda - a própria Swinton aponta, ao cobrir os espelhos, para como a imagem engana, e são os instintos do corpo que devem ser seguidos. É um filme sobre a ciência, o saber, que pisa em um território Von Triano ao se desfazer desde cedo da necessidade de criar um mistério, se beneficiando disso a todo o momento (se assemelhando principalmente à “A Casa Que Jack Construiu” e “Ninfomaníaca”). Por que daríamos atenção à um diálogo que, em tese, deveria criar tensão e dúvida, se sabemos da inutilidade da suspeita?
Por outro lado, Guadagnino preserva algumas tendências do filme de Argento e do gênero em si, como um split focus bem óbvio, zooms exagerados, uma releitura melancólica da trilha dissonante de sirenes do original, montagens que apresentam imagens grotescas buscando um choque instantâneo e não uma continuidade reveladora. Aliando isso à momentos onde dá função à abstração (uma Samara no escuro perseguindo alguém), ele cria homenagens mais diretas às muitas maneiras que o gênero tem de divertir, algo que não me parece andar sempre junto à abordagem evasiva, esticando também a pesarosa abordagem para o puro deleite. Entretem e chama atenção na hora, mas as vezes soa como algo que destoa do restante da projeção.
Fascina, no entanto, a natureza dos corpos que expõe.
Diferentemente de Elio e Oliver, Susie e Sara são mais dispositivos do que personagens. Sequer sabemos quem são, não importa o que sentem, protagonistas de um plano maior que conhecemos logo no início e que têm na narrativa o mesmo papel que têm na dança, satisfazer ideias e ideais do grupo que as controla. Susie não hesita em emprestar seu corpo, e chega a ser impressionante como Guadagnino consegue criar sensualidade em sua figura quase estéril e inerentemente ligada à destruição daqueles à sua volta. Na celebrada cena onde ela tortura outra dançarina com sua performance, todas essas técnicas e temas se encontram, o espaço se confunde (os rostos cheios de prazer das chefonas parecem olhar pra ela e pra outra menina ao mesmo tempo) e o ato se torna uma coisa só: não o que acontece, nem o que vemos, mas a importância do movimento e da submissão do indivíduo. O efeito é perturbador na mesma medida que puxa nossa atenção, uma expressão artística brutal e irresistível, que se satisfaz junto à nossa recepção da cena.
Logo, é um filme que se desfaz de humanidade em prol de seus exageros, representados pelos costumes das bruxas, algo que torna o subtexto relacionado à segunda guerra um complemento quase perfeito. Ao se recusar a se curvar à mesma culpa que tomou conta da Alemanha nos anos 70 (onde o filme se passa), as bruxas pensam apenas em conservar suas essências - e corpos - sem qualquer juízo de valor. Quando parece repensar tudo - talvez por amor -, a Madame Blanc de Tilda Swinton expõe o que restava de individualidade nela e talvez em todo o covil, mas logo encontra um fim tão indefinido quanto a maneira do filme em apresentar suas imagens: morta, mas ainda viva.
O festim final, então, é a coroação de toda essa construção técnica e temática: a câmera perde uns 20fps, o vermelho estoura e a iluminação cai, os cortes se complementam em apresentar o espaço, mas mesmo em união falham - propositalmente - em racionalizar o que visualizamos… porque não há racionalização, há apenas uma necessidade irrefreável de seguir uma crença que ninguém sabia, ou sequer julgava, realmente querer seguir. De maneira metafísica, a própria Susie é destruída por conta de uma revelação imprevisível, em uma cena que deve encher os olhos de amantes do gore e confundir ainda mais quem passou as últimas duas horas já confuso. O crítico Matt Goldberg teoriza que a transformação de Susie seja tanto uma libertação de sua sexualidade reprimida como possua uma natureza messiânica, purificando o que havia de abuso de poder no covil.
Não sei se Dakota Johnson, que carrega uma carga sexual pré-estabelecida em “50 Tons de Cinza” (que soa como um conto de fadas perto disso), era a atriz certa para viver Susie. Sua dificuldade em expressar emoções e intenções combina com o papel da personagem, mas diminui o poder da transformação e até suga sugestões que poderiam tornar a experiência toda ainda mais incomoda. O restante do elenco existe sob o mesmo ar, reprimidos pela mise-en-scène e servindo a ela, enquanto Tilda brilha em dois papéis diferentes. Seria ela o mais próximo de um ser humano que assistimos, em ambas suas formas? Se sim, imagino o quanto a percepção acerca dela pode mudar o filme em uma revisita.