O Cavaleiro das Trevas e o Início do Fim do Heroísmo
Perdi a conta de quantas vezes li, escrevi e comentei sobre como considerava este filme de Nolan o melhor da história de seu gênero.
Os argumentos, na maioria das vezes, são os mesmos: efeitos práticos ao invés de CGI, uma trama adulta e que pisa em outros gêneros, um realismo pouco comum para filmes de herói, o Coringa.
E não que estes não possam ser elementos celebrados em qualquer obra, mas não são nunca o motivo dela funcionar. Conforme estudei e expandi (e sigo fazendo) meu olhar sobre Cinema, percebi que o realismo é apenas uma das muitas maneiras de se contar uma história, e que não há nada de mais louvável em filmar um caminhão girando no ar do que fazer essa cena digitalmente. O que importa é como o diretor aplica essas escolhas.
Recentemente revisitei “O Cavaleiro das Trevas”, e pude constatar coisas que as inúmeras assistidas anteriores jamais mostraram: apesar de ser uma influência quase limitante em seu gênero, é um filme que funciona apesar disso. O realismo não se faz glorioso ou pomposo, mas uma força do caos (representado pelo Coringa) que impede que seus personagens se tornem os heróis que o gênero normalmente demanda. As performances parecem estar em outro plano quando comparados ao restante do filme, as frases são de efeito, entoadas, há um senso forte de justiça e valores, mas que jamais perfura a carapaça realista, que jamais a torna maleável ou fantástica. No fim, é um filme sobre como a sociedade, podre como é, se torna incorruptível para o bem.
E tudo bem, temos dezenas de filmes assim (de “Clube da Luta” a “Coringa”), mas Nolan consegue extrair menos uma lição e mais uma exaustão moral, com conflitos que requerem a todo o momento que esses valores sejam postos a prova, que forçam seus personagens a decidir entre morrerem como heróis, ou se tornarem vilões. Nesse sentido é até um filme bem brega, que canta seus temas (“alguns homens só querem ver o mundo pegar fogo”), e que passeia pelo cinza apenas para ressaltar a diferença entre bem e mal. Não se torna moralista justamente por nos dar a opção de escolher, seja de apertar um botão e explodir um barco ou de escolher qual vítima salvar - e o fato de que o Coringa ganhe em ambas as situações demonstra seu poder como causa e sintoma desse caos social.
A própria ação é a menos interessante em todos os filmes de herói, Batman jamais parece um ser sobre-humano, mas sim um cara que quer se livrar o mais rápido possível dos inimigos porque sabe que o relógio está sempre girando. Já imaginaram o Homem de Ferro se preocupando com cachorros, facas e balas? Nolan não apresenta qualquer interesse em engrandecer seus feitos físicos (até pelo contrário, mostrando ferimentos e o cansaço que vem de brinde) porque a todo momento somos lembrados de o quão falho, e portanto humano, é o herói principal. Chega a ser engraçado, porque a confiança de Bale como Bruce Wayne consciente (o inconsciente é o playboy) sugere um início para a esperteza das performances da Marvel, mas por trás disso e das muitas máscaras que assume, é possível ver um homem extenuado e sem certeza do que fazer a seguir, com dificuldades em aceitar a vida que escolheu e a todo momento questionando suas decisões e os motivos que o levaram a elas.
Não que a abordagem seja livre dos vícios do cineasta (que se tornariam mais aparentes a partir de “Interestelar”): as longas cenas de perseguição impressionam, mas logo se tornam preocupadas demais em si mesmas e com o quão plausíveis se fazem, funcionando melhor quando povoadas por confrontos diretos - aquela onde o Coringa desafia Batman a atropelá-lo é particularmente marcante e conversa com tudo que o filme faz. E embora não brinque tanto com o tempo como em outros de seus filmes, a edição quase frenética entre pontos de trama distintos traz potência, mas aposta em uma dramaticidade mais pontual que duradoura. A morte de Rachel tem menos impacto que sua construção, o que não deixa de ser um desperdício.
A performance de Gyleenhaal até me incomodou menos com seu didatismo dessa vez, e o próprio fato de não ser uma atriz mais “idealizada” fisicamente funciona, pois Nolan nunca faz questão de torná-la mais do que é. Ela e Harvey Dent não fazem um casal “bonito” por suas aparências, a fotografia granulada impede qualquer ideal se não o de justiça, mas se tornam figuras empáticas e trágicas por ilustrarem a força irrefreável do Coringa. Quando Dent perde metade do rosto, o efeito soa grotesco em um filme livre deles, ou seja, uma representação praticamente perfeita da frase que popularizou duas horas antes. Infelizmente, seu clímax com o Batman acaba sofrendo do mesmo problema da morte de Rachel, ao evitar qualquer dramatização, a cena se torna seca quando parecia merecer uma atenção maior (o plano dos dois caídos é meio cômico até).
O mesmo pode ser dito do Coringa, sendo que a última vez que o vemos ele está pendurado e nenhum fim certo lhe é dado. Ou melhor, será que não? Canonizado como a melhor performance de todos os tempos se você passear pelo YouTube, Heath Ledger se torna a representação de tudo que o filme promove, e ao vermos Batman tendo de fugir da polícia em seu último ato como Cavaleiro das Trevas, a certeza é que, novamente, o Coringa venceu. Talvez por isso Nolan o filme de pé quando pendurado, dando a impressão de que está voando em um filme com efeitos precários, como se, mesmo na derrota física, sua vitória moral fosse tão prazeroza que ele agora se encontra nas nuvens sombrias que jogou sobre uma cidade mergulhada em caos.