Crítica | Trabalhar Cansa

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Em 2011, Juliana Rojas e Marco Dutra já deixavam suas marcas em uma das obras mais interessantes e tematicamente abrangentes do terror brasileiro: “Trabalhar Cansa”.

No longa, três principais tramas são desenvolvidas para contar a história de dinâmicas sociais trabalhistas no nosso país. A primeira é a de Helena que, após abrir um novo mercadinho, tem que lidar com bizarros problemas que passam a acontecer ali. A segunda é a de Paula, jovem empregada e babá recém-contratada da casa da família de Helena que vai sofrendo uma opressão por parte dos patrões (algo que rima facilmente com os funcionários do mercado). A terceira é a de Otávio, marido de Helena, que é demitido e perde o controle da sua situação, desnorteado num universo profissional novo, onde entrevistas de emprego não passam de uma zombaria infantil e parecer jovem na foto do seu currículo vale mais do que suas experiências. O expediente cansa a todos eles. Até o final, já estarão exaustos.

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O longa expõe um ciclo abusivo no mercado de trabalho brasileiro. O da família de classe média que, ao se deparar com uma adversidade, desconta com demandas e jornadas abusivas nos seus empregados para tentar se manter (ou se enxergar) na posição que pensavam ter. “Não acho mais nada nessa casa...” Helena reclama para a empregada. A patroa passa a ser desconfiada, rancorosa e rígida com tudo que concerne a seu lar e ao seu mercado, abrindo o comércio até mesmo em feriados, reclamando de pequenos atrasos e checando a bolsa de seus funcionários. A podridão desse sistema fica para o subconsciente: ao ver sua filha mexendo no dinheiro do caixa, Helena diz: “Não brinca com isso, filha. É sujo”.

Cada cena abre uma nova janela, conta uma nova história e coloca novos temas na mesa. Nenhum novo conceito é previsível e todos são abordados extensivamente, sem recorrer à sermões. A cena da peça teatral escolar do filho do casal aborda tanto uma hipocrisia disfarçada em relação ao poder quanto uma aproximação entre questões raciais e desigualdade econômica - as crianças dessa escola particular, todas brancas, precisam usar blackface para interpretarem escravos. Já em outra cena, ao ganhar sua carteira de trabalho, Paula recebe um “elogio” do seu novo patrão: “Agora você existe...” A existência do negro, até hoje, só lhe é permitida quanto a sua força produtiva, quanto a sua mão de obra, quanto ao seu serviço. Há críticas até mais sutis na direção de arte: a casa da família é decorada com pequenas estátuas de mulheres africanas, mas a única negra que vive ali é a empregada. Questões de gênero também se desdobram quando a noção de que mulheres devem trabalhar no lar e homens fora de casa é subvertida. Acenos até à questões indígenas, quando o garoto se “veste de índio” para ir à escola e, também principalmente, o ‘Mercado Curumim’, local reapropriado e remodelado pela família. “Não pode sair por aí quebrando tudo.” diz o antigo inquilino “Esse lugar não é seu.”

“Trabalhar Cansa” confia nas imagens e na quietude para passar suas ideias. O silêncio providencia espaço simbólico para os gestos, que "falam" mais alto. E são gestos discretos. Paula, a empregada, não precisa lançar um olhar lancinante para Inês, a chata mãe da patroa que a perturba. Basta lavar o prato com mais força que a gente pega o recado. Há uma insistência por parte de Inês em exercer poder ao seu redor, principalmente sobre a empregada negra, sempre o travestindo de preocupação e detalhismo exacerbado. Os braços que Inês cruza no momento em que Paula entra na cozinha de noite para buscar água criminalizam a sede da mais jovem, tudo isso reforçado pelo silêncio e pelo plano demorado. Ainda é uma cena muito brasileira, infelizmente.

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Infiltração, bolor, bolas nojentas de pelo com minhocas e outros objetos estranhos são encontrados na nova área alugada para o estabelecimento. Pouco a pouco, o mercadinho vai se mostrando amaldiçoado, e passa a intoxicar a personalidade de Helena e revelar uma herança podre.

E Helena não está afim de lidar com isso. Não fala para ninguém que há algo ali e tenta, ela mesmo, ignorar que aquilo existe. Bota uma tela para encobrir, tenta disfarçar o cheiro com spray, esconde o dente da besta no bolso e, finalmente, [SPOILERS] precisa queimar os ossos do monstro de noite no meio da floresta - na caixa de fósforos, a bandeira do Brasil [FIM DOS SPOILERS].

Os sinais de um pós-horror, com dois diretores que dominam o gênero, vão sendo jogados como migalhas ao chão para nos guiar a um final surpreendente e óbvio: o terror somos nós. O que se desenrola não é nada natural, mas muito familiar. As relações trabalhistas nesse país são um monstro velho e podre na parede que faz o lugar inteiro apodrecer. São resquícios escravocratas que definiram as dinâmicas sociais e econômicas do país. E que bom que filmes como esse nos ajudam a pegar uma marreta para enfiar a mão no buraco e ver, finalmente, o que é que está causando tanta putrefação.

8,5

 

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