Crítica | Passione D’Amore (1981)
Na principal cena de Passione D’Amore (1981), o soldado Giorgio, em estadia temporária na casa do coronel Girotti, está sozinho em um cômodo, à noite, quando ouve o barulho de alguém descendo as escadas. Inicialmente assustado, Giorgio olha pelos vitrais que separam a cozinha da escada, até que percebe se tratar de uma das empregadas da casa - o que o faz retomar sua atividade de leitura. A empregada o diz, então, que a senhora Fosca, prima enferma de Girotti, não está se sentindo bem e não poderá descer para conhecê-lo.
A noite e o dia seguinte são separados por um único plano, de Giorgio tentando ensinar outro soldado a andar a cavalo. Logo em seguida, vemos alguns soldados saindo da sala de refeições, e estes cruzam com Giorgio, que se senta, esperando os empregados o servirem. Eles entram e saem até que Giorgio fica novamente sozinho, e ouve o mesmo barulho que na noite anterior. Ao se virar, se depara com a figura de alguém descendo as escadas, borrada pelos vitrais: a câmera acompanha o movimento do corpo com um deslize suave que, ao encontrar a porta, recebe o acompanhamento de uma serena composição clássica. O borrão, inicialmente pintado pela luz natural, ao chegar naquele ponto de encontro se transforma em sombra, que tenta olhar pelo vitral da porta por um breve instante antes de abri-la, materializando para o filme a personagem que o rege.
O código da cena, sua serenidade, seu arranjo substituído por acaso, e todas suas evocações históricas e estéticas, apontam para um momento marcante. Fosca, inicialmente, uma mulher misteriosa, da qual apenas ouvimos falar, cuja primeira aparição é como borrão e então como sombra emoldurada, figura mitológica pertencente aos vitrais dos templos góticos. Há um componente de união das artes: a arquitetura, da sala onde Giorgio senta sozinho, isolado no canto, da conexão dos cômodos e da escada que sugere um espaço virtual, sugestivo e evocativo; a música, que começa a tocar no momento onde todos os elementos convergem; a pintura, na figura que se emoldura e, pela luz, finalmente ganha contornos que nos permitem vislumbrá-la.
Mas quem aparece neste momento de concatenação, de desague de tantas artes e de uma cujos códigos àquela altura já estavam mais do que delineados, é uma mulher chamada Fosca. Ela, cujo nome (título da obra literária que deu origem ao filme) significa sem brilho, opaco, algo que não reflete a luz com nitidez. Sem proferir nenhuma palavra, e aos olhos intrigados de Giorgio, entendemos o porquê.
A atriz que interpreta Fosca, Valeria D’Obici se torna ali musa não apenas do momento (trata-se de um momento, dentro de um plano, dentro de uma cena, que reorganiza o filme inteiro), mas de toda uma teorização de Scola: o cinema pode promover a união de todas as artes, mas é, de todas elas, a mais refém da semelhança do Homem. Aos olhos de Giorgio se apresenta uma mulher de aparência horrenda que, iluminada como que em um filme expressionista dos anos 20, tem suas feições sombreadas de modo que mais parece o Nosferatu, de Murnau (e por que não, de Herzog).
O que propõe Scola é uma reversão do tempo, uma reversão do mito de Plínio, da origem da pintura: quando viu a sombra do amado delineada na parede pela luz da vela, momentos antes deste partir, a jovem coríntia contornou sua silhueta, assim o eternizando. O que daria Giorgio para voltar aquele momento, para impedir que a pintura voltasse a ser Mulher.
Mais a frente no filme, devastada com o misto de pena e repugnância crescente de Giorgio com sua condição, Fosca profere aquela que é uma das mais tristes frases que já ouvi, e que dá ao filme motivo de ser, e à cena motivo de existir:
"Daria toda minha vida para ser bonita naquele momento".