DON L | CARO VAPOR II @ OPINIÃO - 09/08/25

Foto por Sara Gomes | @sarasgomes_

Don L, mais uma vez, desfilou seu talento em solos gaúchos. O rapper subiu no palco do Opinião na noite do último sábado (9) e agraciou seus fãs com uma setlist fortemente focada em seu último trabalho, CARO Vapor II – qual é a forma de pagamento?

O MC cearense é um dos principais expoentes do rap contemporâneo no Brasil. Com mais de 800 mil ouvintes mensais no Spotify, Don L se destaca por sua autenticidade, intercalando batidas dançantes inspiradas em sons tipicamente brasileiros com ativismo político – ele é declaradamente comunista e sempre se orgulhou disso.

Sua obra, particularmente Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 (2021) e Caro Vapor II – Qual a Forma de Pagamento? (2025), representa um projeto artístico-político que busca reconfigurar o imaginário histórico e cultural brasileiro. Através de uma abordagem crítica, o rapper cearense subverte narrativas hegemônicas, transformando sujeitos marginalizados em agentes de transformação. Essa empreitada não se limita à denúncia: ela reconstrói identidades fraturadas pela violência do colonialismo, o massacre colonial é agora matéria-prima para uma reconstrução simbólica. A proposta aqui é reapropriação do passado como alicerce para a transformação do presente.

A primeira frase que se escuta em RPAV2 dá o tom do disco e denuncia sua intenção: “Você tem que entender que enquanto você não for capaz de contar a sua história sua história vai virar uma piada na boca do Diabo” ((interlúdio 1), Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2, 2022).

Em faixas como vila rica, Don L reimagina episódios como a fundação de Ouro Preto (MG), denunciando o genocídio indígena e a escravidão: "por cima de sangue derramado / já fomos quilombos e cidades [...] depois do massacre ergueram catedrais".

A inversão narrativa transforma bandeirantes em alvos de justiceiros que roubam ouro para libertar escravizados, simbolizando a reapropriação da história pelos oprimidos. "Meus heróis não viraram estátua, morreram lutando contra quem virou." (Uma história de amor e fúria, 2013).

Se RPAV2 escava o passado, Caro Vapor II, três anos depois, enfrenta os dilemas do presente sem abandonar as raízes políticas. Don L mantém o foco na luta anticolonial, mas desloca a lente para as dinâmicas do capitalismo tardio. A pergunta título – "Qual a forma de pagamento?" – ironiza a mercantilização da vida e da cultura, expondo o imperialismo embutido em tecnologias cotidianas. A fusão de rap com samba jazz, baião e funk não é mero experimentalismo: é uma reivindicação da cultura negra e periférica como núcleo da identidade nacional.

Dessa forma, CVII se aprofunda em uma análise complexa do presente, articulando como as estruturas de poder permeiam o tecido social até alcançarem o indivíduo. A obra investiga as novas faces do controle, expondo como as consequências do colonialismo em um país que nunca rompeu com seu passado escravagista são ressignificadas na era digital, onde o papel das big-techs emerge como uma nova forma de imperialismo que extrai dados como antes se extraiu ouro.

É sob essa lógica onipresente do capital que Don L examina a vida íntima: os amores perdidos, os do presente e os que estão por vir deixam de ser apenas um tema romântico para se tornarem um campo de batalha, questionando se o afeto pode sobreviver sem ser precificado. O álbum se transforma, assim, em um mosaico da experiência contemporânea, um registro simultâneo das derrotas e vitórias do povo, onde cada faixa parece documentar uma trincheira diferente na luta para viver e amar autenticamente dentro de um sistema que submete os conteúdo às suas formas de pagamento.


Foto por Sara Gomes | @sarasgomes_

Com cerca de 1h20 de show, o “último bom malandro” cantou as principais canções de seu novo lançamento. A performance iniciou com “Caro” e manteve seu ritmo dançante com “Pimpei seu estilo”. O espaço para o ativismo também se fez presente, com destaque para Kendrick e Kanye, música que, como ele mesmo diz, em entrevista para a Folha de São Paulo, "É um recado para os caras de que eles não estão ligados como é ser do sul do mundo". Além disso, “Melhor Vida”, onde o artista assumiu a controladora do DJ, também mexeu com o público.

Por fim, Don L encerrou a apresentação com uma surpresa. Em um tom levemente cômico, ele havia aberto uma enquete no Instagram para que os fãs pudessem decidir qual seria o fechamento do show. As opções eram “Primavera” ou “Tudo É Pra Sempre Agora”. A primeira opção venceu, porém, para o espanto de todos, ele encerrou seu show com “Morra Bem, Viva Rápido”, música do “Caro Vapor/Vida e Veneno” – única música da noite que não faz parte do novo álbum. Como um bom amante de uma mentirinha, não me importei. Além do mais, interpretei como uma ode à obra que antecedeu “Caro Vapor II” e, cada vez mais, está sendo deixada de lado no catálogo recheado de clássicos do artista.

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