Crítica | Selma

Ava Duvernay é uma diretora rara.

Com origens no jornalismo e nas relações públicas, sua decisão de entrar na indústria cinematográfica foi um tanto tardia quando comparada aos seus contemporâneos e para ela, mulher negra, isso poderia ter sido apenas mais um obstáculo em um meio competitivo e desigual, mas Duvernay é, além de uma talentosa cineasta, uma mulher de negócios extremamente inteligente e competente. Ao começar sua carreira com documentários, que necessitam de menos orçamento e tem um nicho mais aberto à experimentalismo, ela não apenas aprendeu a profissão, mas adquiriu experiência contando histórias verídicas que, alguns anos depois, a ajudariam a fazer de “Selma” um dos melhores filmes de 2014.

A habilidade dela vai além de criar cenas marcantes sem apelar para o melodrama - como nas marchas à Montgomery ou nos discursos do Dr. King -, mas também reside em explorar da melhor forma a bela e polida cinematografia de Bradford Young, engrandecendo seus personagens com o uso de luz quando em público e mergulhando-os na escuridão de lugares fechados, revelando seu lado humano e seus medos mais profundos. É um filme lindo de se olhar, com uma paleta de cores levemente achocolatada e uma reconstrução de época sutil, delicada, mas eficaz e notável, o que contrasta diretamente com a brutalidade pelo lado da polícia mostrada sem pudores, onde é possível notar o quão atenta Duvernay estava ao não apelar para o choque barato provocado por banhos de sangue que poderia desvirtuar do tom da narrativa.

Esta, que sucede consideravelmente mais do que outros filmes baseados em figuras reais graças a um roteiro bem dosado de Paul Webb, que foca em uma parte específica da luta pelos direitos civis, não se tornando episódico como filmes biográficos tendem a se tornar. Por conta disso, por mais que Martin Luther King esteja no centro de todas as ações, o nome “Selma” se justifica, pois o filme, assim como a causa, nunca foi apenas sobre ele.

E é uma pena constatar que, de todas as cinco performances masculinas indicadas ao Oscar de Melhor Ator em 2015, apenas a de Michael Keaton ,em “Birdman”, está no mesmo patamar do que faz David Oyelowo aqui. Além da incrível semelhança física, o ator sucede na composição interna de seu personagem, nos apresentando não um santo livre de defeitos, mas um homem que, apesar de genuinamente bom e justo, entende quais cartas jogar para que o resultado esperado seja atingido. As performances, inclusive, são universalmente sólidas, com as únicas exceções sendo Tim Roth, como o racista governador George Wallace e Tom Wilkinson, como o presidente Johnson, ambos não completamente a vontade em seus papéis e o segundo tendo um arco que quase, quase figura como o cliché do salvador branco.

E é uma pena maior ainda que “Selma” apele para cenas quase autoindulgentes, próximas ao final, elevando o nível de melodrama em um filme perfeitamente balanceado. São poucos momentos - como um envolvendo King e John Lewis, interpretado por Stephan James, feito com a mesma obviedade que filmes como “Estrelas Além do Tempo” e “Green Book” adotaram -, não mais que dez minutos, mas que caracterizam em excesso uma história que não precisa de pena para funcionar. Não acho errado supor que Duvernay, inteligente também em empregar composições Soul e R&B menos conhecidas e mais voltadas para o Gospel justamente para não manipular emoções, tenha sido convencida a incluir momentos como estes, mas, mesmo não sendo o caso, um mínimo escorregão não diminui seu sublime trabalho.

“Selma” é, assim como sua diretora, um filme raro que, ao abordar o racismo norte-americano nos anos 60, consegue fazer valer os valores de sua história sem romantizá-los. Mais do que isso, evidencia a humanidade, e a falta dela, envoltas em uma luta que continuamos a travar mesmo 50 anos depois.

8.5

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