Crítica (revisada) | A Chegada
Recentemente re-assisti à este filme de Dennis Villeneuve e percebi que, mesmo gostando - e muito - do longa quando o vi pela primeira vez, não fui capaz de extrair tudo que o faz um dos melhores exemplares de seu gênero.
E talvez ainda não seja, mas estou pronto para uma segunda tentativa.
Poucas vezes faço isso (re-escrever uma crítica), mas neste caso (e em alguns outros), percebo o quão inexperiente e até inexpressivas minhas palavras eram na época, mesmo que não as condene, pois, de sua própria forma, evocam os pensamentos de um eu que não mais existe e é fascinante comparar tanto as experiências conflitantes que tive para com o filme, como minha própria capacidade de apreciá-lo. Sim, estou me alongando nesta introdução, mas é apenas porque a própria premissa de “A Chegada” se relaciona diretamente com esta lógica que apresentei acima. E, desta vez, me utilizarei de spoilers para comentar sobre o filme, então esteja avisado.
Baseado no conto "Story of Your Life" de Ted Chiang, acompanhamos a chegada (ha!) de doze naves alienígenas na Terra e os esforços dos países ao redor do mundo para entender suas intenções. É aí que o governo dos Estados Unidos decide chamar a especialista em linguagens Dra. Louise Banks (Amy Adams) e o astrofísico Ian Donnelly (Jeremy Renner) para tentar estabelecer contato com as formas de vida que residem dentro da nave pousada em solo americano.
Iniciando o longa com uma sequência de momentos envolvendo Louise e sua filha - desde o nascimento da menina, até sua morte precoce na adolescência - Villeneuve estabelece desde cedo a pura relação entre ambas ao passo que justifica tanto a postura deprimida da Doutora como o próprio tom de melancolia, que se instala no início da projeção e jamais vai embora. O diretor canadense - responsável por mais grandes filmes nesta década do que Martin Scorsese (nas minhas contas 5 a 4, mais sobre isso outro dia) - é conhecido por saber trabalhar tanto as escalas micro como macro em seus trabalhos, mas aqui ele testa a si mesmo.
Ao enquadrar Amy Adams ou no centro, ou nos cantos de planos abertos que vão desde o campus externo da universidade, até sua vazia sala de aula, ele pode comunicar um mar de nuances que cabe a nós decifrar: desde o quão pequena a personagem é em relação ao universo a sua volta, à o quão ínfima é a passagem do ser humano pela vida, mas, principalmente, o quão fechada e isolada ela está no determinado momento. Villeneuve sabe, também, a hora de fechar a câmera para conferir uma sensação de claustrofobia que coincide com a habilidade de Adams em extenuar sua respiração, além da forma como ele nos faz enxergar o filme pela visão da protagonista, seja por meio da câmera subjetiva - atenção para uma tomada aérea que, aliada ao design de som, apresenta uma longa porção de Terra sem jamais soar impessoal ou robótica - ou ao seguir-la em suas caminhadas pelos vários cenários.
Pois apesar de ter nas figuras de seus alienígenas o ponto propulsor de sua narrativa, “A Chegada” é mais sobre o drama envolvendo a personagem de Adams do que sobre a tensão provocada pelas criaturas, tensão esta que jamais deixa de ser palpável. Nisso, o design de produção e os efeitos visuais merecem aplausos ao conferir um realismo assustador às naves que, tomadas inteiramente pelo preto, apresentam uma textura similar à diversas substâncias encontradas na Terra, mas mundos diferentes de qualquer uma delas. A escala com que Villeneuve filma as naves também é notável, as tornando ainda maiores e mais ameaçadoras do que, em teoria, são, e reparem em como a trilha instrumental de Jóhann Jóhannsson adota acordes dissonantes e ruídos apropriados para a temática extra-terrestre sempre que nos aproximamos dos objetos.
O próprio design das criaturas merece destaque não pela inovação - pois imaginar alienígenas como polvos não é, necessariamente, uma novidade -, mas por dividirem uma textura similar à nave que soa, aparentemente (me corrijam professores), biologicamente aceitável, além de amedrontarem por seu tamanho e falta de traços humanoides. A trilha, novamente, se mostra ainda mais dissonante e confusa quando vemos as interações dos personagens com os seres, fazendo uma rima interessante com a natureza gasosa do ar que respiram.
Mas se estas interações se tornam realistas pela forma como são concebidas, é graças à performance de Amy Adams que elas se tornam humanas.
Tão eficaz com diálogos como em sua linguagem corporal, a atriz entrega uma das melhores - se não a melhor - performance de sua carreira, flertando entre a desolação presente na Louise que acredita ter perdido a filha, a confusão da Louise que começa a compreender a linguagem das criaturas e a sabedoria da Louise que ostenta uma visão sobre a vida privilegiada quando comparada à ela própria. Além disso, ela confere realismo ao conhecimento da personagem acerca da linguagem humana - e a decisão de Villeneuve de não legendar suas palavras em chinês não apenas asserta sobre o ponto do filme, mas comprova o talento de sua atriz de conferir entendimento mesmo quando não entendemos o que ela fala (bem, eu não falo Chinês). Já Jeremy Renner consegue transmitir com veracidade a forma como seu personagem enxerga a ciência, desde um olhar fascinado à suas constatações inspiradas, ao passo que Forrest Whitaker emprega ao Coronel Weber todo o desgaste que alguém de sua posição possui sem necessitar falar nada que não o protocolar. E, mesmo com uma pequena participação, o ator natural de Hong Kong, Tzi Mah, consegue humanizar um personagem que o roteiro quase, quase “vilanizou” injustamente.
Porém, se “A Chegada” é tecnicamente irrepreensível, aponto dois momentos que, de certa forma, me incomodam durante a projeção. Logo na primeira interação entre Louise e os “Heptapods” (divertidamente batizados de Abott e Costello), quando a tensão está atingindo seu ápice, o filme corta rapidamente para a sala de desintoxicação em algo que soa como uma oportunidade perdida de construir em cima da expectativa criada pelo primeiro contato do público com os seres. O outro momento se dá na forma de uma narração em off feita por Jeremy Renner, onde o mesmo sumariza o que haviam aprendido sobre as criaturas até então, mas, isolado no meio do filme, é uma decisão que quebra a ideia de enxergarmos tudo sob a visão de Louise e que poderia facilmente ter seu efeito expositivo impresso na forma de uma explicação do cientista à qualquer grupo de militares.
Mas se o roteiro de Heisserer não evita estas duas escorregadas, elas não tiram o brilho deste que é, de longe, o melhor trabalho de sua mediana carreira. Brilho esse que não se dá pela trama em si, mas sim em como ela nos envolve o suficiente para que constatemos que a melhor parte de “A Chegada” é, curiosa e justamente, quando o finalizamos e percebemos que seus temas e questões continuam impregnados em nossas cabeças. Pois se, em suma, assistimos à uma ficção científica que quase beira a fantasia envolvendo seres extraterrestres, seu maior valor está na forma como sua instigante premissa discute verdades aparentemente incontestáveis sobre a natureza humana.
Além disso, do ponto de vista estrutural, Heisserer se mostra impecável ao alternar os acontecimentos do presente e as memórias de Louise de forma que, aos poucos, elas são reveladas como futuras. E reparem na forma como Villeneuve filma as duas linhas temporais, uma quase estéril, adornada pela cinematografia em torno de cores frias e com uma paleta de cores azulada, enquanto a outra, que envolve os momentos entre Louise e a filha, além de ser filmada com uma câmera na mão quase intrusiva, é banhada de raios de sol que ressaltam a afeição entre as duas.
Em sua mais pura essência, “A Chegada” é um filme sobre dor e perda, sobre a importância do diálogo em tempos tão sombrios (vale lembrar que Trump fora eleito naquele ano) e sobre nossa visão limitada acerca de nossa própria experiência neste universo. Além, é claro, da nossa eterna busca por respostas. Por mais que, as vezes, pareça que nem mesmo as perguntas estejam certas, pois talvez não devêssemos nos perguntar se “estamos sozinhos” ou “quando iremos morrer”, mas sim algo que não precisa se basear em presunções futuras. Afinal de contas, estamos vivendo?
E, nesse sentido, “A Chegada” poderia ter ainda outro nome que casaria perfeitamente com sua temática e que, curiosamente, fora utilizado por outro filme consideravelmente inferior lançado no mesmo período: