Crítica | O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz
FANTASMAS FLUTUANTES
Em filme seminal, Yasujiro Ozu filma os fantasmas que surgem entre o passado e o moderno
Hoje, ao final de um bom dia sem fazer absolutamente nada depois de um mês emocionalmente desgastante, parei por um segundo e apreciei o silêncio. Com minha namorada, iniciamos a frase: sem campainha, sem telefone, sem cachorros latindo. Mas como eu queria ouvir os cachorros latindo.
Minha relação com Yasujiro Ozu é uma das que mais me orgulho da escolha que fiz em 2021, ano que, em meio a tantas notícias terríveis, peguei o impacto de ter assistido uns bons dez filmes do Godard em 2020 (e não entendido nada, mesmo que tenham sido os da Nouvelle Vague) e o usei para de fato “descobrir” o Cinema, voltando ao início e iniciando uma jornada que continua até hoje. Até 2020, gostava de filmes. Em 2021, virei cinéfilo.
Entre as muitas coisas que assisti estava Pai e Filha (1949), talvez o filme mais “importante” da carreira de Ozu, onde seu estilo finalmente parece se encontrar por completo. Relendo o que escrevi na época, e acessando minhas memórias, não dá pra dizer que “gostei” de assistir ao filme, mas foi um daqueles que ficou comigo por muito tempo (e segue), me fazendo reavaliá-lo sem a necessidade de reassistí-lo. Relendo mais algumas coisas (a maioria, uma porcaria) que escrevi sobre Ozu naquele ano, estão algumas frases como “Ozu não é pra mim”, e em praticamente todas falo sobre seu estilo “matemático”.
Hoje, bons três anos passados desde que entrei em contato com seu Cinema pela primeira vez, e em meio a uma maratona de seus filmes que ainda não assisti, me deparei com este O Sabor do Chá… uma semana depois da semana mais difícil da minha vida desde aquela fatídica em 2021 - lá, perdi o primeiro cachorro que chamei de meu, aqui, perdi a última cachorra que posso dizer que passei mais tempo da vida com ela, do que sem.
Para além, mas nunca ignorando o aspecto pessoal, o filme foi o primeiro dessa nova leva que me faz botar em cheque a dupla de Pai e Filha e Tokyo Story (Também Fomos Felizes chegou perto) como seus melhores filmes, mas, mais importante que isso, foi este filme que me fez ver como cresci. E aprendi.
Enfim, UM POUCO SOBRE OZU
Duas frases me vieram a cabeça ao assistir O Sabor do Chá…
A primeira, um potencial título: nos tornamos fantasmas em nossas próprias casas.
A segunda, uma potencial descrição: é como se A Noite (1961) fosse dirigido por Hong Sang-soo.
Ambas inspiram ideias sobre minha experiência com o filme, uma de um ponto de vista mais técnico, outra mais teórico, mas ambas convergindo para e dentro do que hoje entendo como o Cinema do Ozu: uma orquestra geométrica das irregularidades da vida, o espaço como uma forma de enquadrar e eternizar a efemeridade do tempo, uma cosmologia da caótica transição geracional no Japão e do próprio Cinema como arte se aproximando da modernidade.
Nesse sentido, diria que Ozu é um artista influente a ponto de se dizer que todo grande diretor é também uma vertente sua, de que sua contribuição para essa modernidade não pode ser subestimada justamente porque, no auge de sua carreira (que ocorreu na década e meia antes de sua morte), consolidou uma língua própria que não compreende apenas o espaço (o plano-contraplano, a câmera sobre o tatame, a exploração 8-4-2 da cena), mas o tempo. Em seus filmes, entender (ou ao menos se sensibilizar para) como a arquitetura japonesa é por si própria um agente narrativo é essencial, mas igualmente importante é conseguir desacelerar do mundo lá fora e entrar no ritmo dos planos e da montagem.
É difícil dizer que há editor mais fluente em sua própria língua do que Ozu, ou dizer que há editor mais fluente do que ele como um todo. Frutos de um processo rigoroso de decupagem e que parecem ser igualmente rigorosos em sua execução, seus filmes possuem uma espécie de convergência bastante manual em como unem essas diferentes fases da produção, mas que atingem uma conexão cósmica dentro da cosmologia antes citada: em Ozu, todas as conversas a mesa são semelhantes, mas nenhuma é igual.
Mas divagar e especular e se maravilhar com seu estilo não é meu objetivo aqui, mas sim catalogar como a mera percepção de sua existência é algo de que me orgulho profundamente. Hoje, consigo sentar por horas com um filme de Ozu e deixar o tempo lá fora passar sem que essas duas correntes entrem no caminho uma da outra. Algo que, assim como seus protagonistas geralmente aprendem, só pode ser obtido com o tempo.
MATERIALIZANDO O ESPAÇO
Nesse esboço geométrico que é cada um de seus filmes, e me pareceu ainda mais evidente em O Sabor do Chá… Ozu cria o que Eric Rohmer (um diretor profundamente influenciado por ele) chama de um espaço virtual, só que se Rohmer e tantos outros esmiuçam esse espaço com o movimento da câmera, Ozu o faz quase que exclusivamente pela decupagem. Com pouquíssimos movimentos, o espaço de cada cena é compreendido em sua totalidade: podemos ir mais para um canto do cômodo, podemos ver o seu centro, podemos vê-lo de outro, e todos esses diferentes fragmentos fazem parte de uma mesma cena (e logo, do mesmo filme), estando eles em evidência ou não.
É curioso porque isso parece ditar também a construção narrativa do filme, que ocorre em blocos distintos até próximo do final, nunca entregando de fato sobre quem ou o que é. E dentro de cada cena Ozu experimenta com pequenas variações do próprio estilo, criando um filme coeso ao mesmo tempo que evidenciando a riqueza de temas e experiências do mundo que filma (uma ontologia de sua própria cosmologia). Em uma cena, algumas mulheres encontram o marido de uma delas em um jogo de baseball, e em um contraplano voyeurístico, o descobrem com uma amante. Na cena final do filme, dois jovens caminham pela rua executando uma espécie de humor físico ala Chaplin (ou Borzage, de quem Ozu era fã).
Para usar outra palavra que Ozu está acostumado, seus personagens flutuam tanto dentro de cada cena, como entre estas - algo que se tornou a estrutura de praticamente todos os filmes de Hong Sang-soo, e o motivo de eu considerar esse o filme mais semelhante entre os dois.
MATERIALIZANDO FANTASMAS
Embora tenha feito toda sua carreira usando o “mundo real” como matéria, é inegável como muitos dos filmes de Ozu sugerem uma dimensão sobrenatural que conecta, ou melhor, se manifesta em suas imagens. Sempre me deixa em um estado contemplativo pensar que em sua lápide, que divide com a mãe, a única coisa escrita é mu (nada).
Seus personagens flutuam por esse nada, o preenchem momentaneamente, mas a força de seus filmes, e especificamente deste, é em como suas presenças continuam influenciando o que está em tela mesmo quando ausentes.
Daí, marido e mulher que desaparecem atrás de portas, paredes e cortinas, que tentam se tornar fantasmas dentro de suas próprias casas, podem até tentar, mas o incomodo de um com a presença do outro torna o menor dos movimentos, barulhos e mesmo ausências em um estrondo impossível de se ignorar. Em diversos momentos Ozu experimenta com um zoom igualmente fantasmagórico, que não emula a visão de ninguém exceto da própria arquitetura, revelando ou escondendo partes da cena, mas nunca a levando para um lugar diferente de onde estava. Com todo seu dinamismo, com toda sua complexa e intrincada mise-en-scène, O Sabor do Chá… é um filme sobre como qualquer movimento, seja ele uma repetição exaustiva ou um desvio momentâneo, acaba evidenciando o nada, o vazio.
Por isso, quando o avião do marido falha em meio ao voo para o Uruguai (gosto muito da especificidade de ter de viajar para o final do mundo) e ele volta para casa - uma elipse poderosa por ocultar justamente o aspecto mais “cinematográfico” da coisa toda, o acaso -, a cena que se segue é uma das se não a mais sublime da carreira de um dos poucos diretores que pode concorrer a alcunha de maior de todos os tempos. Marido e mulher, unidos por um acaso invisível, voltam para o mesmo ambiente onde viveram por anos até que sua relação se esgotasse, até que se tornassem fantasmas vagando dentro da própria casa. E só posso parar e contemplar a habilidade de Ozu em tornar este momento tão universal: um lanchinho da madrugada que transforma toda uma vida.
A começar pela entrada dos dois na cozinha: abrindo uma porta ainda como sombras, e mais outra agora iluminados, como que deixando de serem fantasmas, como que se materializando em um lugar que, por mais que flutuem todos os dias, há muito não visitam. Eles podem percorrer os mesmos corredores, podemos vê-los nos mesmos planos que vimos ao longo de todo o filme, enquadrados e delimitados pelas mesmas molduras, mas pouco a pouco, a cada movimentação, a cada reação, a cada pequeno reconhecimento da presença um do outro, fica evidente que tudo está diferente.
E é curioso que em muitos debates sobre os tais maiores diretores a “habilidade do diretor em filmar vários gêneros” é considerada essencial, e Ozu mostra que isso é só mais uma bobagem de uma quantificação inexistente da arte quando todos os seus filmes são sobre mudanças tão pequenas que só as percebemos quando nada que vem depois delas é o mesmo. Quando percebemos o sabor do chá verde sobre o arroz.