Crítica | Apollo 10 e meio

DOCUMENTANDO A NOSTALGIA

Em filme pessoal, Linklater volta à infância e inova dentro do próprio estilo


Apollo 10 e Meio certamente é um dos, se não o filme mais pessoal de Richard Linklater. O que, para um cineasta que faz filmes, basicamente, sobre a própria vida e as indagações que suas diferentes fases trazem, quer definitivamente dizer alguma coisa.

Entre tragédias amorosas (trilogia Before), reflexões sobre a infância (Escola de Rock), adolescência (Dazed and Confused), a transição entre as duas (Boyhood), e a jovem vida adulta (Waking Life), o diretor é certamente um dos mais auto-biográficos entre seus contemporâneos - que divida um estilo semelhante a Hong Sang-soo (provavelmente seu maior adversário nesse quesito) é dos melhores presentes que o Cinema nos permite hoje em dia.

Mas se o sul-coreano utiliza seus filmes como confessionário - a trajetória envolvendo sua infidelidade, separação e revelação do relacionamento com Kin Min-hee é dos grandes momentos da arte no século 21 -, Linklater parece manter um diário o qual escreve com imagens.

Nas páginas documentadas dessa animação - que, no caso, foi filmada em live-action e animada posteriormente -, ele não necessariamente volta à sua infância, mas ao contexto em torno dela. A corrida espacial, que pautou a sociedade americana no fim dos anos 60, e seus primeiros contatos com o Cinema crescendo no Texas, estado conhecido pelos Cowboys mas também pelos foguetes.

O curioso é que, diferente da maioria de seus projetos, Apollo 10 e Meio se baseia menos no poder emocional escondido no cotidiano - que Linklater geralmente atinge com filmes que mais do que flertam com tendencias menos comerciais -, e mais em uma contextualização reveladora que procura justamente documentar uma época tão querida de sua vida. E aí pode ser estranho chamar esse de seu filme mais pessoal, pois seu potencial de emocionar e comover parece delimitado pela narração de Jack Black, que não permite que os tempos e silêncios sejam sentidos. Mas é justamente ao brincar de documentário que Linklater entrega para si mesmo um presente, uma pequena viagem ao espaço e à própria memória - conseguindo me fazer nostálgico por algo que não vivi no processo.

Como sempre, a atenção que Linklater tem para detalhes aparentemente casuais proporciona cenas marcantes. Do mosaico com todos os programas de TV da época, das particularidades de cada irmão ao pedir um sorvete, e até o olhar desapontado do pai ao ver que os filhos ligam menos para a missão de Neil Armstrong que para o que quer que pudesse acontecer na escola no dia seguinte, o diretor parece conseguir extrair com naturalidade esses momentos, seja em um projeto ambicioso de 12 anos rodado ao redor disso, ou em uma animação definitivamente mais objetiva.

E mesmo com essa abordagem incisiva (suspeito que sem a narração o filme seria muito semelhante a todos os outros de sua filmografia), as alternâncias entre o “real” e o fantasioso ainda proporcionam momentos de esplendor. A criança olhando pra Terra reverbera nesse jogo de escalas desenhado pelo filme: documentado, ali, como o tamanho daquela missão que parou o mundo de pouco ou nada altera as caminhadas que temos que fazer ainda nele.

Mais Linklater que isso, não existe.

8.3

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