Crítica | Love Streams (1984)
SOBRE SEGUNDAS CHANCES
O Cinema de John Cassavetes é um que requer esforço e paciência. Filmes como Faces (1968) e Uma Mulher Sob Influência (1974) tem menos cenas que acontecimentos (e estes já não são exatamente eventivos), e isso é sempre um desafio para quem foi letrado no mainstream - basicamente todos nós.
Expoente máximo do Cinéma Vérité, o ator/diretor é dos maiores nomes do Cinema Independente norte-americano, e acredito ser possível creditar a ele algumas das tendências que vemos ainda hoje - na maioria das vezes mal utilizadas por filmes de festival, mas que ao menos estão ali. Sua câmera, na maioria das vezes na mão ou estacionada, por vezes se aproxima de maneira desconfortável dos rostos de seus atores, os quais ele procura despir completamente. A encenação poderia ser chamada de Cinema de Fluxo, não fosse quase sempre contida a espaços pequenos e que logo se tornam câmaras de tortura onde o objetivo é revelar que a humanidade de seus personagens já se encontra destruída a mais tempo do que aquelas limitadas horas de cada filme.
Enquanto não posso dizer que “gostei” dos dois citados acima, certamente marcaram por seu estilo e pela exaustão que provocam, ao ponto de me fazerem deixar Love Streams baixado por alguns meses, marinando, antes de decidir que era hora.
Então, quando abri a pasta e apertei play, sabia que o rio no qual entrava tinha uma correnteza difícil de se acompanhar… o que não podia prever é ser completamente submerso.
UM AMOR ABSOLUTO
“O amor é uma correnteza continua”
Gena Rowlands teoriza mais de uma vez. Tentando soar verdadeira e intensa, sua personagem exala desequilíbrio e instabilidade. Por duas horas, Cassavetes (seu irmão em cena, e então marido na vida real) a desnuda sem piedade, revelando os frangalhos de uma criatura que tem na esperança de um amor absoluto a única conexão com a realidade. Que este também seja o motivo de seu colapso é evidência da complexidade da narrativa costurada pelo diretor.
Mais contido em seu estilo (falo, como dito, com apenas dois filmes na bagagem), Cassavetes parece ter plena consciência do que procura fazer aqui: um filme ao menos tragável, que convida para eventos que fascinam pelo absurdo, mas que também procura comunicar de maneira mais clara as situações que geram as discussões em cena. É uma premissa simples: dois irmãos se encontram em momentos opostos, ele tentando (ou tendo que) se aproximar do filho, e ela tendo que (mas não tentando) se afastar da filha.
O próprio juízo de valor, nos outros filmes delegado às experiencias individuais aqui já vem definido. Não há interpretação: Sarah e Robert são seres humanos problemáticos, e o que vemos são os efeitos de seus comportamentos destrutivos.
Cassavetes consegue, com isso, construir núcleos mais focados e que se tornam mais intensos por concentrar toda essa energia. Toda a situação com o guri tem um potencial devastador pra qualquer que tenha vivido ou visto algo parecido, um plano contraplano bem direto: pai de baixo, filho de cima, uma relação de influência clara que só poderia levar pro caos que é a criança berrando desesperada pela mãe. A própria textura da câmera é bem reveladora, um registro granulado de algo que tem tudo pra se tornar uma memória traumática, que se torna sensorialmente mais convoluta (quando ele apanha do padrasto, parece que estamos de volta a Faces) conforme avança.
É uma textura que também registra todo o material humano, ala Ingmar Bergman, mas sem aquele toque delicado do Sueco. Quase como uma câmera caseira registrando momentos triviais, o que ajuda a estabelecer a dimensão carnal do filme ao mesmo tempo que permite suas discussões não corpóreas flutuarem. A cena da capa, onde Sarah senta enquadrada pela porta e conversa com o irmão contrasta perfeitamente com o momento onde se encontram. O abraço que se torna uma conversa onde nem vemos os dois, na cozinha, lavando roupa suja - mesmo que eles evitem ao máximo chegar a isso porque sabem que não sobreviveriam.
Afinal, por mais arrebatadora que seja sua primeira hora, e mesmo o breve momento da dupla reunida, Love Streams é sobre duas sequências chave, que quase o alçam ao surrealismo de um Buñuel, e premeditam o trabalho de uma Lucrecia Martel.
Particularmente, uma das poucas coisas que não tolero bem no Cinema (e na vida real) é assistir a pessoas surtando. Logo, quando Sarah começa a montar seu zoológico e, principalmente depois, quando faz um show de comédia (?) pra ex-marido e filha, o que estava sendo uma experiência emocionalmente envolvente se tornou em mais um teste de paciência. Mas repensando, seria apenas lógico que o processo de desmonte provocado pelo filme culminasse em ambas as cenas. Não estamos mais no mundo “real” que o registro da câmera nos revela, mas numa fantasia torcida, tolerada apenas porque permite que seus protagonistas se mantenham flutuando, na mesma correnteza que os levou aonde estão, e da qual não se atrevem a tentar escapar, por medo de não haver uma segunda chance.
Como chegaram ali, ou para onde vão, não importa. O medo de se afogar na realidade, que grita fora de seu mundo particular, é a única coisa mais forte que o amor que sentem um pelo outro. Seres humanos, em sua forma mais vulnerável.