Crítica | 1917
Na vida há uma chance.
Contínua e impiedosa, ela avança. E você fica para trás se não corre e empurra quem estiver em sua frente. Ela não te poupa de quando você enfia a mão nos orgãos internos de um inimigo alemão ou do medo que o escuro proporciona quando intercalado por breves luzes explosivas. A vida não foge dos momentos brutais e nem se atém somente a eles, porque pode ser raro mas, de vez em quando, existe uma boa história, uma risada, uma coincidência, uma criança, uma vitória. Na vida há uma chance. Agarre-a.
Dirigido magistralmente por Sam Mendes (Beleza Americana, 007 - Operação Skyfall), “1917” te deixa respirar por alguns segundos à sombra de uma árvore antes de te lançar no meio do campo de batalha.
Mesmo ambientado no ponto de vista britânico no cenário da 1ª Guerra Mundial, o filme não tem seu principal inimigo esculpido na figura do exército alemão. A batalha aqui é muito maior que apenas a sobrevivência - o elemento principal da obra, que traz foco, medo e apreensão, é o da bomba-relógio.
Devido à descoberta de uma armadilha alemã, dois cabos britânicos recebem a perigosa missão de entregar nas mãos do comandante outro batalhão uma mensagem ordenando o cancelamento de um ataque. Blake, que inadvertidamente convida seu amigo Schofield para a tarefa, tem um irmão lutando no outro batalhão e, por isso, a atribuição se torna muito mais pessoal para ele. O roteiro de “1917” é eficaz em moldar seus dois protagonistas e a sua relação desde o início, sem qualquer desperdício de tempo, utilizando-se de breves falas, alguns esbarrões e um pedaço de sanduíche. Para além disso, a narrativa faz questão de trabalhar os medos e, principalmente, a evolução das motivações de cada um individualmente.
Mas é claro que não poderia deixar de falar dele: o plano-sequência enorme que é o filme. Com exceção de um corte em um momento bem específico, o filme usa artifícios de montagem e enquadramento para fluir como um só take. Mas isso já foi feito, é claro. Diversas vezes. Trinta e um anos após 1917 (o ano, não o filme) Hitchcock já lançava “Festim Diabólico”, que ajudou a carregar um misterioso suspense em tempo real. A grande particularidade de “Birdman” também é justamente seu longo plano-sequência (com cortes escondidos, é claro) que segue o ator decadente em seus infortúnios pelos bastidores de um teatro da Broadway. E nem mesmo na guerra isso é inédito: temos um vislumbre contínuo do acampamento em “Desejo em Reparação” por exemplo, e também uma das melhores cenas de plano-sequência, de guerra e uma das minhas favoritas do cinema no primoroso “Filhos da Esperança”. Se você já assistiu, sabe de qual estou falando.
Mas mesmo que, até um ponto, uma cena de guerra em plano-sequência não seja novidade, “1917” consegue se destacar e imprimir com convicção uma marca distinta entre filmes de guerra, distanciando-se tanto dos convencionais oscar-baits de guerra quanto dos longas que já se utilizaram de planos-sequência e outros artifícios somente por extravagância ou capricho desnecessário. A continuidade conversa diretamente com a história, traduzindo o sentimento de urgência e oferecendo uma aventura imersiva e significativa.
Um bom exemplo são alguns dos enquadramentos do primeiro ato, que se estendem nos rostos da dupla de protagonistas enquanto eles apontam armas em uma trincheira que pode estar abandonada ou não. Vemos eles, e não o que eles veem, garantindo assim um suspense ainda maior pelo que podem encontrar. Como a câmera foge de um ponto de vista imediato deles, não somos capazes de caçar os rivais alemães nas esquinas das trincheiras ou entre os destroços - nossos olhos se restringem a procurar o perigo diretamente no olhar da dupla britânica. E a cena da cidade em chamas - a minha favorita do filme - brilha graças à sua excelente coreografia sincronizada entre atores, set e equipe de filmagem, garantindo um espetáculo de composição visual desenhado para deixar você na ponta do assento (assim como estava o resto do público na sessão em que fui).