Crítica | Crianças ao Vento (1937)
NOVE A NOVE A NOVE
em busca do gesto, hiroshi shimizu encontra o tempo
Mais ou menos três anos atrás (ou três anos antes de escrever este texto), tive que cuidar dos meus dois irmãos (então com 8 e 10 anos) por alguns dias por conta de um problema grave com meu pai. O mais velho, mais maduro, estava visivelmente preocupado. O mais novo, mais rebelde, também sentia, mas até hoje prefere brincar e deixar as preocupações pros outros.
Em meio a Covid, jogamos bola todos os dias no quintal, destruindo as plantas da minha mãe (que não é mãe deles) e, por qualquer motivo, no meio de um dos jogos milagrosamente me curei de uma urticária que já durava seis meses.
Assistindo a Crianças ao Vento, obra prima de Hiroshi Shimizu, vi, por uma janela, aqueles dias de novo. As brigas e discussões por coisas pequenas, as brincadeiras inventadas em meio ao nada, a preocupação que os unia. Vi, na brincadeira de luta que os protagonistas fazem com o pai, os jogos dois contra um que jogava com meus irmãos, onde usava as vantagens do tamanho enquanto tramavam planos pra ganhar nem que fosse (roubando) uma única vez.
David Bordwell - http://www.davidbordwell.net/blog/2009/05/13/pierced-by-poetry/
David Bordwell sistematizou, com imagens, o uso de espaços e da montagem de Shimizu, um diretor que se preocupa pouco com contraplanos, e que coloca o olhar do filme como seu próprio: um olhar empático e sensível aos pequenos momentos, a simplicidade da vida. Seus filmes são, não importando o clichê, janelas para tempos específicos, para interações que acontecem em recortes determinados - sejam eles espaciais (um orfanato, uma escola, um spa, um porto, um ônibus) ou temporais. E são nestes últimos que Shimizu, ao meu ver, fez seus dois melhores filmes.
Crianças da Colmeia (1948) e Crianças ao Vento, ambos filmes sobre deambulações, que com certeza também dependem de um senso importante de lugar (no primeiro, os escombros, no segundo, a cidade), mas que testemunham o crescimento de seus protagonistas enquanto estes exploram o mundo (tanto espacialmente, como em suas organizações, instituições, rituais). Em Crianças da Colmeia essa descoberta não tem um fim determinado, enquanto em Crianças ao Vento a busca pela estrela cadente resulta onde o filme começa - mais sobre isso, no final.
Em ambos exploramos o espaço por preenchimento - não pelo olhar das crianças, mas pela presença delas em cômodos e campos abertos. Não vemos pelo que espiam ou miram, mas vemos onde estão, vemos como interagem com o mundo ao redor, como se novos espaços fossem validados e assimilados na mise-en-scène conforme as crianças neles entrassem. Shimizu não é como Mizoguchi, que escava a profundidade de campo, ou como Ozu, que estabelecia o espaço virtual do filme pela frontalidade - nesse caso, o senso de liberdade com que seus atores se movem talvez se relacione com Kurosawa, mas claro que buscando uma relação mais espiritual e espirituosa com a cena e com o mundo.
Apreciado e reverenciado por todos estes - e por todos que conhecem o seu Cinema -, Shimizu transcende quando as ações, quando os gestos encontram solenidade no singelo. Se em Mizoguchi está na modulação que nos afunda no mundano, em Ozu está nas pequenas mudanças do cotidiano, em Kurosawa está na conciliação entre o movimento inexorável e as virtudes de sua exaustão, o transcendental em Shimizu está na especificidade de algo que, depois de tanto explorarmos e descobrirmos, agora não mais é como antes.
Daí, quando na simplicidade daquele enquadramento dos dois filhos brincando com o pai que retorna, o mais novo, mais rebelde, mais cheio de vida, limpa uma lágrima, a certeza é que estamos assistindo ao filme de um diretor que aprendeu a olhar - e a nos fazer olhar.
Hoje, eu e meus irmãos jogamos de novo - dessa vez, um contra um -, não mais no quintal (ficou pequeno), mas na garagem, onde minha pastora de catorze anos “mora” e que nos emprestou enquanto foi fazer outro exame. Mas ela voltou e tivemos de deixar o final do jogo pra depois. O placar era nove. A nove. A nove.