Crítica | Os Banshees de Inisherin

Simples e sensível, “Os Banshees de Inisherin” reflete sobre a vida a partir da morte.

Colin Farrell e Brendan Gleeson levam a tela dois homens que nos fazem questionar sobre os sentidos da existência.

Ficar sozinho sempre me assustou. A ideia de que as pessoas na minha volta podem um dia decidir se afastar, por consequência de algo que eu fiz ou não, constantemente se emaranha nos meus pensamentos sobre minha vida. Ainda, em uma explicação inicial posso dizer que me defino por minhas amizades e uso elas para mediar minha relação com o mundo. E justamente quando esse sistema de valores desaba na vida de Padraic (Farrell), que “Os Banshees de Inisherin” começa. Ambientado em uma ilha semifictícia na Irlanda, o roteiro teatral mergulha na vida da pequena população local e as implicações nas pessoas quando Colm (Gleeson) deixa de querer ser amigo de Padraic sem nenhum motivo além de decidir que o protagonista não é interessante o suficiente para passar o tempo que antecede a sua morte. O cenário escolhido por Martin McDonagh pontua a monotonia e a solidão dos personagens que se dividem entre aqueles que querem escapar e aqueles que estão confortáveis esperando sua eventual morte enquanto escutam uma guerra no horizonte.

É com certo humor que vemos as primeiras reações dos personagens ao descobrirem que a dupla principal rompeu seu laço de amizade, que consistia em tomar cerveja no bar local todo dia às 14 horas. A verdade que todos percebem e alguns pontuam é que se trata de dois homens diferentes, Padraic pode ficar duas horas falando sobre o cocô de seu jumento enquanto Colm está obsessivamente interessado em compor músicas no seu violino como a garantia de que isso será seu legado. O personagem de Farrell, idealista, não deixa de tentar usar todas técnicas que encontra para tentar reatar a amizade dos dois, até que o antagonista faz um ultimato: se o antigo amigo não parar de importuná-lo, cortará os dedos da sua mão esquerda, a que usa para tocar violino. Nesse ponto que McDonagh encara (junto com o público) a profundidade do debate que está propondo, ao invés de deixar algumas pessoas debatendo existencialismo por duas horas, o diretor invoca o extremo como saída para canalizar os desejos dos seus personagens.

O confronto de visões é o motor do roteiro, que mostra personagens atravessados pelos mesmos problemas. A violência externa da guerra civil que observam de longe e a violência interna da vida monótona, enquanto Padraic tem dificuldades de entender a primeira, ele convive facilmente com sua rotina repetitiva, com seus animais, com as pessoas na sua volta, por outro lado Colm, um homem muito sério, não compreende esse aspecto da sua vida, como é capaz de compreender os anseios em sair da ilha que a irmã de Padraic, Siobhán (Kerry Condan) ou como ele tem certeza que a sua morte não importa. O protagonista se questiona e é visto como um tolo na ilha (não o mais tolo, esse papel é do seu único outro amigo, Dominic, interpretado por Barry Keoghan) por sua visão simples de mundo, mas na realidade ele é o único capaz de entender que Colm está deprimido. O antagonista acredita que cortar seu amigo e depois seus dedos seja a única maneira de ele focar no que acha importante antes do fim da sua vida e, apesar de ser muito mais culto, evita refletir sobre sua relação com o mundo e prefere uma mínima sensação de controle, encerrar sua amizade com Padraic, para se sentir no comando de algo, apesar da inevitabilidade do fim da sua vida e da provável irrelevância depois disso.

Não se trata, como os personagens parecem acreditar, entre ser relevante ou ser feliz, entre uma visão dionisíaca e uma visão apolínea, o roteirista solta essas ideias em “Os Banshees de Inisherin” para confundir os dois amigos sobre seu papel no mundo. Um banshee é uma criatura mágica do folclore irlandês que anuncia a morte de alguém próximo, e a morte parece ser a coisa mais comum entre todos na ilha, seja nos boatos que o policial conta para dona da venda, seja na guerra que ouvem no horizonte, seja como motor para ação do antagonista. E, apesar de Padraic afirmar que “não há banshees em Inisherin” é a família dele que se encontra de modo recorrente com a senhora misteriosa que habita Inisherin e é a morte dos pais de Padraic e Siobhán que parece ser o último evento na vida dos dois antes de Colm romper seus laços com o protagonista. Por isso, a tese do filme não é sobre duas visões de mundo se confrontando, é sobre como a nossa relação com a nossa vida é também reflexo da nossa relação com a morte e o imenso desconforto que isso nos causa.

9

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