Critica | Crianças da Colmeia (1948)

TRANSCENDENDO O CINEMA

Obra prima de Hiroshi Shimizu chega onde poucos chegaram


Em 1948, Vittorio de Sica ganhou o mundo - e um lugar cativo na história do Cinema -, com aquele que seria considerado um dos mais essenciais trabalhos do Neorrealismo Italiano. Ladrões de Bicicleta representaria o auge do primeiro movimento moderno do Cinema, e também uma referência para o cânone composto por, entre outros, Vítimas da Tormenta (1946), Os Esquecidos (1950), Os Incompreendidos (1959), Pixote (1981), Cafarnaum (2018).

É uma pena, portanto, que outra obra prima do mesmo ano tenha sido praticamente esquecida - ou melhor, mal tenha sido assistida. Children of the Beehive, que não teve um lançamento mundial assim como a maioria dos filmes Japoneses pré-anos 50 e cujo título nem foi traduzido para o português, traz a mesma relação entre a infância e os escombros (físicos, psicológicos, sociais) da guerra, porém de maneira que, ouso dizer, transcende além da obra de De Sica.

Não que a comparação competitiva seja mais produtiva que do que uma educativa, mas dentro de toda a subjetividade presente na relação humana com a arte, objetivamente enxergo neste filme o auge do Cinema de Hiroshi Shimizu, um dos grandes nomes dos anos 30, e do próprio Neorrealismo, o qual o Japão começou antes mesmo da Itália.

O que é curioso porque, após assistir cinco de seus filmes em sequencia, me tornei um admirador profundo de sua obra, mas sentia falta de um “filme para chamar de meu”, na falta de uma expressão melhor. Não que cinco filmes seja muito, mas dado o nível alto de cada um, já estava me perguntando se ele transcenderia o próprio estilo em algum momento. Em uma decisão de última hora, decidi fazer uma dobradinha entre Introspection Tower (1941) e este aqui, e o resultado não poderia ser mais poderoso.


O QUE RESTOU DA COLMEIA

O que mais chama a atenção em Shimizu é como ele filma a ação no espaço. Todos os seus filmes contam com cenários de suma importância para a narrativa (um porto, uma montanha sendo cruzada por um ônibus, uma igreja, uma pequena vila, uma escola), mas ele não necessariamente os filma de maneira que adquiram significados além de sua mera apresentação. Os enquadramentos são simples, não parece haver uma simbologia escondida em planos ou cortes, e seus personagens percorrem de uma maneira natural pelas cenas sem, necessariamente, atribuir um valor maior para aquilo que é mostrado.

Isso certamente lembra Howard Hawks, ainda mais como os filmes sempre encontram um momento de mostrar como toda aquela simplicidade se acumula em um impacto emocional que chega sem ser pressentido. No caso de Hawks é algo mais contido, enquanto Shimizu se entrega ao melodrama nas pinceladas finais de cada projeto.

Mas Crianças da Colmeia propõe um avanço nessa relação espacial e três cenas chave exemplificam isso.

Uma delas, logo ao começo do filme, mostra um ex-soldado entregando pão a uma criança de rua. Instantaneamente, outras crianças o rondam como um enxame de abelhas, todas com os olhos indagando. É um momento singelo - e filmado com a mesma frontalidade de sempre -, que relembra o trabalho em conjunto glorificado em Introspection Tower, mas o mostra sob uma outra lente. Pós-guerra, menos otimista, e com uma visão triste do instinto de sobrevivência.

Mais a frente, uma das crianças se separa de uma pessoa importante, em meio ao que restou de uma pequena cidade. Os escombros então assumem um papel direto na narrativa, bloqueando a visão conforme estes tentam se enxergar pela última vez. Os cenários deixam de ser apenas palco, e se tornam elementos indispensáveis na linguagem formal do filme. A própria torre vista no filme de 1941 se torna um símbolo de auto-referência que parece estar meio século a frente de seu tempo e, quando vista, mesmo que de longe, potencializa a relação do filme com o espaço e o olhar.

Por isso tudo, Crianças da Colmeia já seria um filme de valor inestimável, mas nada, absolutamente nada se compara, ou poderia me preparar, para o que Shimizu faria na sequência que descrevo a seguir.


OLHANDO POR NÓS

Mais cedo no filme, o pequeno Yoshibo corre em direção ao mar e grita o nome da mãe, morta quando ambos chegaram de barco ao país, fugindo da guerra. Próximo do final, doente, ele diz que quer ver o mar mais uma vez e, no maior ato de altruísmo e amizade que vi em um filme na vida, um amigo o leva nas costas, subindo um morro onde ambos poderiam enxergar o mar.

Shimizu entende o momento, e o filma como uma espécie de purificação do próprio Cinema - não dele, mas do mundo. Uma paisagem Idílica, uma tarefa Sísifa. A câmera mostra a beleza do ato, enquanto os cortes enfatizam a dificuldade. Planos abertos onde vemos o morro, fechados onde vemos os pés encontrando força onde não mais há. A trilha sonora ascendente, que parece admirar o momento como um ato de bravura e sacrifício sendo contado enquanto acontece, unido à simbologia de subir para mais próximo do céu, criam um momento etéreo, poético e que, de certa forma, rejeita a dureza do Neorrealismo. No entanto, é ali que o diretor se aproxima de seu verdadeiro potencial como movimento: não é na terra, ou nos escombros, mas em como aquelas duas crianças representam o legado do momento mais sombrio (e absurdo) da humanidade.

O que acontece a seguir é provavelmente a sequência mais bela, e mais desoladora que já assisti, um momento transcendental que deixa claro o motivo de Mizoguchi e Ozu (os patrões do transcendentalismo no Cinema) o colocarem em um pedestal inalcançável. Shimizu não apenas encontra o limite do potencial da imagem, mas também do som. Basta um olhar e uma palavra, e assim como o topo daquele morro que aproxima Yoshibo de sua mãe, e os olhos de seus amigos que dali em diante olham por ele, Crianças da Colmeia parece existir além das capacidades físicas do Cinema.

Afinal, mirar com os olhos se torna algo praticamente impossível quando o que vemos está completamente afetado por emoções, lágrimas, e um sentimento de que assistimos algo milagroso.

10

Anterior
Anterior

Crítica | Os Banshees de Inisherin

Próximo
Próximo

Crítica | Babilônia