Crítica | Flame Of My Love

UMA PREGAÇÃO E UM TESTEMUNHO

Apesar de texto didático, filme de Mizoguchi explora seus temas de maneira cinematográfica


Ao longo dos últimos dois anos, fui de não saber quem era Kenji Mizoguchi para considerá-lo não apenas meu diretor favorito, mas também o melhor diretor da história do Cinema - uma comparação completamente arbitrária, mas que, apesar da minha ainda falta de conhecimento (estamos sempre estudando e aprendendo), sacia meu intuito esportivo.

Tendo assistido a 15 de seus filmes, impressiona tanto como seu estilo característico carrega uma força inerente em cada trabalho, como ele sempre consegue explorar algo diferente mesmo naqueles menos conhecidos. O uso da profundidade de campo em As Irmãs de Gion (1936) precede Cidadão Kane (1941) por cinco anos; Utamaro e Suas Cinco Mulheres (1946) tenta filmar a sensualidade por um voyeur artístico que lembra até mesmo um Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019); Senhorita Oyu (1951) torna as dicotomias de Vertigo (1958) em algo ainda mais trágico.

Em Flame of My Love (1949), Mizoguchi realiza seu filme mais “Oscarizavel”: uma narrativa centrada em torno de uma época de mudanças políticas no século XIX, levemente baseado na vida da feminista Hideko Fukuda e que, com um texto bem direto e sem rodeios, verbaliza o sentimento comum no Cinema de Mizoguchi. Criado pela irmã em um bordel após a morte da mãe, o diretor passou a carreira filmando e registrando o sofrimento de mulheres ao longo da história (e, principalmente, de histórias) do Japão.

Mas o que na mão de outro diretor poderia se tornar um filme auto-indulgente e palestrante, nas mãos do único rival de Alfred Hitchcock (pra mim Cinema é igual basquete, correria) em manipular imagens, se torna um documento de desigualdades que usa um pouco de tudo que o Cinema ofereceu nas duas décadas anteriores.


ROMPENDO ESTRUTURAS

A arquitetura japonesa é ideal para a construção de quadros, tanto que não utilizá-los acaba sendo um desperdício. Antes de se entregar para a modernidade, quando cidades como Tóquio passaram a ocupar um lugar futurista no imaginário popular, eram os tatames, as portas de correr, e as venezianas que deixavam as sombras a vista de outro cômodo o principal cenário dos diretores Japoneses.

Se Yasujirō Ozu descobriu uma forma matemática de se apropriar disso, Mikio Naruse explorou com a edição todas as possibilidades e cantos e Akira Kurosawa tornou as cenas internas quase santuários de meditação para personagens que precisam voltar para a calmaria, Kenji Mizoguchi faz do quarto emoldurado por portas e janelas quase uma câmara de tortura.

Talvez nunca tenha conseguido fazer o que faz naquele plano de Senhorita Oyu (1951), mas os anos 40 de Mizoguchi parecem justamente serem de experimentação. Premeditando o fluxo do Modernismo, Flame Of My Love torna o ambiente algo vivo e vivido, girando em torno da figura trágica de Eiko Hirayama (interpretada com intensidade por Kinuyo Tanaka), sempre a encontrando por trás de portas, pessoas e movimentos de câmera. Esta que, com Mizoguchi, sempre assume um caráter implacável, como se testemunhasse os acontecimentos sem se dobrar perante eles.

Em duas cenas mais caóticas, vemos um nível de violência surpreendente para época, onde mulheres são subjugadas de maneira a contrastar com o didatismo do monólogo no início do filme - daí também tornando a dialética entre forma e conteúdo algo que impulsiona a discussão temática do filme. Algo que pode ser exemplificado em como Mizoguchi contrapõe uma panorâmica que revela uma mulher que escuta a outra com zelo (enquanto essa discursa um papo bem de Instagram), por outra que mostra um homem encontrando uma jovem na rua e decidindo comprá-la.

Não que o filme deixe de ser didático mesmo em sua forma. Inclusive talvez seja um dos trabalhos de Mizoguchi que mais abusa de detalhes da mise-en-scène: Tanaka é costumeiramente a única personagem com o rosto iluminado, quase sempre centralizada nos quadros enquanto outras mulheres ganham relevos de sombras, que ressaltam seus mergulhos no limbo, e a maioria dos homens já aparece com o rosto totalmente encoberto. Em um momento brilhante, dois personagens tem um rápido confronto físico que derruba algo em frente a câmera, limitando nosso campo de visão. Logo então ela sai do quadro, e ele segue lentamente com a sombra crescendo na parede atrás - a cena então corta para um chiaroscuro de Tanaka, totalmente mergulhada nas sombras.


UM FILME DE TESTEMUNHOS

Mas talvez o que de mais moderno haja no filme não seja nem essa desconstrução do plano clássico (sem deixar de abusar de características do período), mas sim a maneira como o olhar da protagonista é o que permite a história ser vista. Eiko parece presa em um mundo feito para enquadrá-la e sufocá-la, como mostra o plano onde testemunha por uma grade uma cena de violência desnorteante - e repare como o deslize da câmera faz as barras parecerem os negativos do filme em movimento.

O filme então surge quase como uma revelação pelos olhos de sua protagonista, que testemunha um mundo de horrores explícitos, implícitos e escondidos. Ela se esgueira e observa tudo tanto na prisão, como na sede política, como na própria casa, se tornando uma participante ativa na exploração dos cômodos, e extraindo confissões que mostram a textura e o relevo da mulher no andar da sociedade Japonesa. Quando uma personagem diz ser grata ao homem que a comprou por ter recebido dele mais carinho que de qualquer outra pessoa em sua vida, dá pra entender bem o nível de clareza que Mizoguchi consegue atingir.

E é no mínimo curioso que, logo após seu neo-realista Women of the Night (1948), Mizoguchi volte a abordar um contexto generalista de maneira intimista, porém substituindo os escombros daquele filme pelo cenário político deste. Como se ambos se complementassem como sua tese mais direta sobre a importância do feminismo, o qual sempre mostrou não como certeza de um amanhã melhor, mas como uma necessidade já tardia para um mundo de sofrimento sem fim.

Logo, o didatismo proposto pelo roteiro (assinado por, entre outros, Kaneto Shindo!) encontra na abordagem de Mizoguchi justificação, em um filme que funciona em camadas distintas e que, mesmo em 2022, parece atual não apenas por mostrar algo que o mundo ainda não conseguiu mudar, mas por fazê-lo de forma que, mesmo em 2022, parece explorar todos os limites do Cinema.

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