Crítica | Creed 3

FÓRMULA DE SUCESSO

Estreia de B. Jordan na direção ganha por decisão dividida


Algumas das melhores memórias que tenho da infância são da minha mãe me apresentando os filmes do Rocky.

Lembro de dar risada com Stallone pedindo a benção ao padre antes de enfrentar Apollo, e de sair dando socos no ar pela casa depois de cada sequência de treinamento. Anos depois, veio Creed (2015), talvez a única franquia do boom de revitalizações que não caiu em desgraça mesmo após três filmes (a maioria não durou um).

A questão: diferente de todas estas outras, o projeto encabeçado por Stallone e Michael B. Jordan não veio com agendas ou propostas falsas de renovação. Justamente o maior mérito desta trilogia (que, acredito, terá novos capítulos) é se manter fiel ao que é: um blockbuster de fórmula, que a entende como parte integral do processo e descobre novos jeitos de entreter, emocionar e evoluir sem apelar para nada que não uma paixão sincera e honesta por si mesma.

O que, de certo modo, pode ser dito também do esporte, cujo aspecto diário é tão ou mais importante do que os grandes eventos. E não importa o quanto a tecnologia permita cada vez mais atletas de elite, possibilidades mais abrangentes e uma comercialização cada vez mais megalomaníaca. No fundo, a melhor história ainda é a Cinderela, o azarão, Davi enfrentando Golias, Rocky enfrentando Apollo.


UM LEGADO CINEMATOGRÁFICO

É difícil nomear muitos personagens mais icônicos que Rocky Balboa.

Da voz afetada de Stallone, ao calção com as cores da bandeira americana, às escadarias da Philadelphia que atrai turistas todos os anos, Rocky cravou espaço próprio no imaginário popular.

Logo, a decisão de cortar o ex-boxeador do filme era um risco considerável - ainda mais quando a oportunidade se apresentou de vermos, literalmente, seu último ato no primeiro filme. A maior dificuldade de B. Jordan poderia ser equilibrar essa ausência no que tange Adonis, mas o astro, que estreia aqui como diretor, opta por uma abordagem mais comedida, talvez justamente para evitar os erros que o levaram a tomar tanta porrada nos últimos filmes.

É inevitável também fazer o paralelo entre diretor-ator-personagem, sendo que agora tanto B. Jordan como Adonis estão nos bastidores, controlando as narrativas e tentando construir uma vida além da luta. O que imediatamente adiciona temas interessantes: mesmo quando o filme cai no lugar mais comum, a impressão é justamente de alguém ainda se ajustando à nova função. A trilha emotiva entra na hora esperada, a conversa em plano/contraplano com closes para enfatizar emoções, uma encenação meio prática (caminhem aqui, olhem ali) que parece ter sido resolvida na hora várias vezes (me lembrando, não negativamente, Clint Eastwood), decisões econômicas em todos os ângulos, mas que não deixam de conversar com a natureza formulaica que estes nove filmes abraçam.

Talvez por isso não seja um problema tão grande, ainda mais porque fica claro que B. Jordan sofre ao lidar com mudanças bruscas de tom: todo o jogo de encenação e revelações do personagem de Jonathan Majors parece abrupto demais, a relação com Drago, embora bem vinda para dar um tom mais maduro, carece de alguma contextualização maior, e fica meio difícil achar lógica interna naquele universo quando Rocky não aparece nem no funeral de alguém tão querido. Uma mensagem de texto, talvez? Uma ligação? É entendível que Adonis queira aprender a correr sozinho, mas o que o torna forte - como comprovado por estes filmes - são justamente as relações que construiu no caminho.

Por outro lado, acho uma benção que, pelo menos até agora, o drama envolvendo a família é conduzido de maneira humana, sem nunca apelar para conflitos desnecessários: a relação com a filha é bonita e leve, Bianca é um porto seguro e não uma bomba relógio, a mãe oferece resistência e atrito… como todas as outras. Chame de conservadorismo, mas o que Creed, a franquia, entende, é que falta, ao menos no Cinema mainstream de hoje, um senso de coletividade, de calor humano.

Assim, um passo de cada vez, um round de cada vez, B. Jordan consegue costurar o filme suficientemente bem para que suas feridas não sejam expostas - tal como um boxeador que tem de contornar suas fraquezas. E sim, vou usar mais algumas metáforas esportivas, é um filme do Rocky.


BRINCADEIRA DE CRIANÇA

Considero haver poucas coisas na humanidade mais puras do que o instinto de lutar. Algo que fazíamos para sobreviver e que não conseguimos nos desprender mais de 12 mil anos depois. Um argumento que gosto muito e que não lembro exatamente onde ouvi (embora acho que tenha sido do jornalista Max Kellerman, que aparece no primeiro Creed!): não importa o evento que estiver acontecendo na sua escola, se um jovem Michael Jordan estiver jogando basquete, ou um Pelé de 17 anos estiver jogando futebol, caso dois zé-ninguém resolvam começar uma briga, todos sabemos onde a multidão estará.

Tanto para Adonis, como para B. Jordan, a vida ainda não está amadurecida o suficiente para se resolver os problemas sem as luvas. O bom é que é justamente aí que o diretor, confesso fã de animes, deixa sua imaginação voar alto.

Das referências diretas à Dragon Ball (a própria premissa lembra, de certa forma, a trajetória de Goku e Vegeta), à luta em meio ao escuro que lembra Naruto enfrentando a Raposa de Nove Caudas, à momentos mais simples como quando Adonis e Damian estão separados por uma parede, ambos iluminados com luzes diferentes, há muito em Creed III que expressa as ideias de seu realizador - algo que muitos diretores estreantes não conseguem fazer. Mesmo a música na sequência de treinamento (que acerta na escatologia remetente ao Rocky III) é um exemplo muito bem sucedido disso: o filme começa com a versão original de The Watcher, de Dr. Dre e a sequência, após um crescendo, cai em um remix de J. Cole. Literalmente, a renovação e a reverência.

Ainda assim, os momentos que mais me surpreenderam foram outros: a sequência inicial, com uma textura mais palpável na imagem e um uso de contrastes pro preto que me lembraram positivamente de Straight Outta Compton (2015), constrói uma atmosfera pesada que contrasta de maneira reveladora com o resto do filme. O jovem Adonis, flutuando entre dois mundos, e estabelecendo o fantasma do passado para o qual o Adonis do presente retorna involuntariamente - os flashbacks confirmam bem isso.

E embora a iminência da luta entre os dois irmãos seja algo bem construído, a melhor cena do filme é a conversa que ambos tem em um restaurante. Retornando à uma granulação (que também volta quando Adonis decide voltar a treinar) que deixa tudo com uma aparência mais clássica, a cena é resolvida com poucos planos, mas que enfatizam a química entre os dois atores. A forma de abrir o canudo, os olhares que dizem mais do que palavras, a linguagem corporal reveladora (B. Jordan se impõe fisicamente, mas se encolhe nas micro-expressões, enquanto Majors faz o contrário) e a luz quente, aconchegante, que sugere uma fraternidade bem vinda.

Portanto, é uma pena que o diretor não tenha se permitido arriscar mais, e tenha optado pela mesma estratégia que o lutador usa no começo do filme. Um olhar de relance - também legado dos animes -, e um checkmate ecoado, mas que infelizmente nunca retorna. Segurando socos, procurando o movimento certo, mas não percebendo que a beleza está justamente em enxergar além dos errados.

Há, em algum lugar de Creed III, o melhor filme de toda a saga. Talvez, no futuro, e em maior controle de suas forças, fraquezas e ideias, Michael B. Jordan consiga encontrá-lo.

7

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