Crítica | Ilha do Medo

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Diversas vezes já escrevemos, neste site, sobre obras de grandes artistas que acabam sendo esnobadas por conta de outras obras em suas carreiras. este é o caso de “Ilha do Medo”.

Confesso ser um fã, um grande fã tanto de Martin Scorsese como do suspense investigativo. Logo, a união do cineasta com a história baseada no livro de Dennis Lehane, o qual ainda não li, não apela apenas para meus gostos cinematográficos, mas pessoais. Só faltaram aqui Jake Gyllenhaal e Amy Adams que este seria, provavelmente, meu filme favorito de todos os tempos (será?).

Contando a história do agente federal Teddy Daniels que, atormentado pela morte da esposa, é escalado para investigar um desaparecimento em uma ilha que serve como hospital psiquiátrico, o filme toma contornos, ao cair nas mãos ambiciosas e visionárias de Scorsese, de diversos gêneros que não apenas o adornam como uma obra única, mas como uma homenagem à “O Iluminado”, de Kubrick, diversas obras de Hitchcock e até de alguém mais contemporâneo como David Fincher. E isso é tudo que você deve saber sobre este longa caso, ainda, não o tenha conferido.

É importante ressaltar que este é um dos poucos filmes, na filmografia de Scorsese, que já começa com uma premissa que podemos pressupor o final antes mesmo do começo. Acostumado a trabalhar com profundos estudos de personagem que servem mais como crônicas das vidas destes do que, propriamente, suas histórias, o diretor adota aqui uma abordagem consideravelmente mais convencional quando se comparado à seu próprio estilo, deixando de lado características clássicas suas (voice-overs, câmera lenta, freeze-frames) em busca de, talvez, mostrar para seus colegas de profissão que continua um mestre mesmo quando não está em seu próprio jogo. Junte isto ao roteiro linear e objetivo de Laeta Kalogridis, e você tem um filme singular do cineasta.

Adaptando a história do livro com aparente fidelidade - pelo que li sobre -, o roteiro é, por si só, excelente, e consegue mascarar a necessária exposição em filmes de detetive sem deixá-la forçada e, fora um pequeno momento no ato final em que acaba contando parte da resolução para mostrá-la, segundos depois, se costura perfeitamente bem do início ao fim. Também é importante ressaltar que, mesmo não assinando o roteiro junto à Kalogridis, Scorsese confere seu próprio toque a história abusando de detalhes que só podem ser completamente percebidos - ou entendidos - ao revermos o filme, além disso, a edição de sua colaboradora de mais de 50 anos, Thelma Schoonmaker - que peca apenas em alguns raccords - é essencial em transformar a história de mistério em uma experiência quase surreal: cortes abruptos parecem não permitir que certos movimentos pareçam contínuos, enquanto outros, mais pacientes, parecem prender o espectador na cena e deixá-lo sem ação. Simulando um pesadelo acordado onde fica clara a sensação de que algo extremamente errado e ruim está para acontecer.

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Fato, também, reforçado pela excepcional trilha sonora que, apesar de não ser original, faz um belo trabalho de reunir composições clássicas modernas - brilhantemente notadas em uma cena envolvendo Max Von Sydow, que poderia muito bem ser uma espécie de Nosferatu - que, logo na primeira cena, dão um ar sinistro e fantástico à ilha composta pelo design de produção como um local vivo, mas, ao mesmo tempo, com um cheiro latente de morte e apodrecimento.

Orquestrando tudo da forma como sempre faz, Scorsese tem controle completo, também, do jogo de câmeras, transformando o longa em uma experiência ainda mais dinâmica ao empregar seu já costumeiro festim de planos, empregando com excelência desde o plano-contra plano em diversos diálogos, como movimentos laterais sutis que remetem às obras do já falado Fincher, como planos abertos que, com o auxílio da música, chegam a lembrar a clássica sequência de créditos de “O Iluminado”. E, apesar de não conseguir dar ao longa a sensação voyeur presente nos melhores Hitchcocks - algo que transformaria este filme em algo quase impossível de se assistir de tão tenso que ficaria -, homenageia o mestre do suspense em outros momentos, como a protagonista loira e a reviravolta no final (que, tudo bem, vieram do livro), mas mais ainda em um belíssimo plano onde vemos o cinzento da ilha ao redor de um bando de ratos (que me lembram os pássaros de “Os Pássaros”) se aglomerando em volta do protagonista.

E a cinematografia que óbvia, mas sabiamente, abusa dos locais com menos iluminação, como no agoniante momento onde toda a luz vem de fósforos ascendidos repetidamente por Teddy, dá tons polidos e rebuscados à praticamente todas as cenas, relembrando também que estamos assistindo à um filme de época que merece pontos por sua detalhada reconstrução de mundo. Esta, responsável por transformar as salas dos médicos psiquiatras, que já são por si só lugares sinistros e banhados de vermelho, em masmorras hostis para com seus visitantes, com uma meia iluminação que parece vir de cantos obscuros de cada cômodo.

E mesmo sendo impecável tecnicamente, não é possível determinar o verdadeiro valor de “Ilha do Medo” sem analisar os conceitos com o qual trabalha, e aqui prefiro usar de spoilers.

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Conhecido por extrair performances extraordinárias de seus atores e atrizes (e lá se vão 22 indicações à Oscar de atuação), aqui não é diferente, o que me surpreende o fato de o longa ser adiado em 2009 e ser lançado em fevereiro, praticamente se cancelando da temporada de premiações.

Mas, focando nas interpretações, como em todos os filmes de Scorsese é essencial dissecá-las para poder, de fato, analisar todos os pontos escondidos na narrativa. Pois se DiCaprio compõe Teddy como um homem impulsivo e energético desde o começo, perceba como a reação de todos à sua presença é sempre dotada de um quê de paciência, como se soubessem (e sabem) de sua reputação dentro da ilha. E o ator dá ao personagem todas as camadas presentes em seus melhores trabalhos, desaparecendo completamente por debaixo de sua personalidade, ainda mais quando comparado à outros papéis que interpretou juntamente com o próprio Scorsese.

Ruffalo, por exemplo, nunca pareceu tão investido no mistério como seu “chefe”, e se sua inabilidade de manusear a arma e falta de apreensão quanto a situação de ambos não lhe pegaram, é porque Scorsese não quis que isso acontecesse, mesmo lhe dando todas as pistas necessárias. Mais impressionante, no entanto, é constatar suas expressões de tristeza e inutilidade quando confrontado com o estado mental de Teddy, que não dá sinais de melhora. E Ben Kingsley, mesmo quando comparado à seu colega vampiresco - traço que o ator abraça ao raspar a cabeça e acentuar as pontas do bigode e barba -, surge ainda mais sinistro, mesmo que seus maneirismos pareçam indicar honestidade. A naturalidade com que ele entrega medicação à Teddy é notável e, mesmo que isso seja mais fácil de pescar à primeira vista, apenas após a grande revelação que percebemos a aceitação do personagem de Ruffalo à todas estes momentos.

Já Michelle Williams - bela e brilhante mesmo com um olhar atormentado e com pouco mais a fazer se não se lamentar - é limitada não pelo roteiro, ou por Scorsese, mas pelo próprio Teddy, que consegue ter em sua mente apenas as últimas expressões que teve da amada. E, mesmo aparecendo em cenas isoladas, ambas as Rachel Solando surgem muito bem como figuras que se contrapõem: a primeira (Emily Mortimer) aparentemente louca, mas acreditando em sua loucura; a segunda (Patricia Clarkson), aparentemente sã, mas desconfiando da própria sanidade. Nada curioso, portanto, que a primeira, a diferente, surja como a resolução de um problema enquanto a segunda, mais realista, surja em meio à um ambiente extremo, onde é praticamente impossível para um ser humano chegar. Enquanto isso, o sempre intenso Jackie Earle Haley consegue, com apenas uma curta cena, dar a impressão de ter roubado uma significante parte do filme para si justamente por conta da construção desta cena em questão, onde Scorsese paciente e quase sadicamente te leva por uma jornada macabra, escura e com tons de vermelho - claras alusões ao inferno, também presentes nas acomodações dos médicos psiquiatras - que culmina naquela figura exótica de cabelos… oras, avermelhados.

E assim, conferindo suas habilidades à cada uma das cenas em que cada um dos atores podem, de fato, brilhar, Scorsese se mostra brilhante também em não incluir, por um momento sequer, uma cena onde Teddy não esteja presente, pois afinal, tudo que vemos é de sua complicada perspectiva. Esse traço, difícil de ser notado à primeira vista, confere também ainda mais mistérios àquele lugar, pois se nosso único narrador (mesmo que não narre, propriamente) não é confiável, o que dizer daqueles seres que, pela maior parte da projeção, estavam em uma declarada farsa? Como apontado por Roger Ebert, em sua crítica do filme lá em 2010, são perguntas que nos fazemos e Teddy também e, por isso, a busca por respostas tende a borbulhar nossa cabeça muito após os créditos finais.

Finalizando, então, esta área com spoilers, me atenho a discutir o já famoso final que fora interpretado de tantas maneiras, justamente por inserir uma fala que não havia no livro. É pior viver como monstro, ou morrer como um homem bom? DiCaprio pergunta a Ruffalo, e aqui irei comentar sobre duas obras de Christopher Nolan: “A Origem” que estrela DiCaprio e também fala de um mundo de sonhos onde a realidade nunca é uma certeza e, também, “O Cavaleiro das Trevas”, onde o Duas-Caras professa algo similar: você ou morre um herói, ou vive o suficiente para se tornar um vilão. Logo, querendo fugir do mundo real onde, apesar de tudo, seria tratado como um monstro/vilão, Teddy escolhe a farsa - sabendo disso, ou não - e prefere até mesmo morrer nela ao se suicidar, pois sabe que tal ato significaria o reconhecimento de suas ações.

E assim fica claro que Scorsese, além de um mestre da sétima arte, é também um profundo amante da mesma, cobrindo décadas de alguns de seus filmes favoritos nesta que é uma de suas mais subestimadas obras primas.

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Tenso, provocativo e praticamente impecável do ponto de vista técnico, “Ilha do Medo” é um dos filmes mais subestimados da vasta e excepcional carreira de Martin Scorsese que vai a fundo em seus temas que, mesmo já trabalhados pelo diretor, tomam contornos ainda mais dramáticos graças à forma como decidiu abordá-los. Ao final, somos presenteados com um filme que revela que nossos atos só não são mais poderosos do que a forma como decidimos encará-los.

Pois se o erro é algo comum do ser humano, assumi-lo é uma tarefa consideravelmente mais difícil.

9.3


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