Crítica | Drive My Car

uma relação honesta com a morte

Drive My Car é um filme raro e brilhante, que cria sentimentos e narrativas a todo o momento


Há no segundo ato um diálogo sobre as palavras nos roteiros dos personagens significarem mais do que palavras, e é esse o motor da maneira como o protagonista se relaciona com as pessoas na sua volta. “Drive My Car” é a combinação de várias histórias, com um personagem transitando ou sendo conduzido por estímulos e pessoas diferentes, o protagonista brilhantemente interpretado por Hidetoshi Nishijima lida com o luto e com as certezas sobre a própria vida de maneira subjetiva, sempre procurando em outros personagens os reflexos da sua existência. Baseado em conto homônimo do famoso escritor Hasuki Murakami, o trabalho assinado por Hamaguchi trabalha para criação de significado no subtexto e explora a sobreposição entre o texto da peça de Tchekhov ensaiada pelos personagens com os diálogos e as histórias contadas por eles. O visual do filme é limpo e simples dando todo destaque para o hiper-cinematográfico carro do protagonista que rouba a cena e a utilização dos cenários em Tóquio, Hiroshima e Hokkaido valoriza o posicionamento dos atores em tela.

Yusuke Kafuku (Nishijima) é um diretor de teatro e ator que ama dirigir seu carro, um SAAB 900 vermelho, seja levando sua esposa Oto, uma roteirista de televisão, para o trabalho enquanto conversam sobre as histórias que ela cria ou andando sem rumo pela cidade decorando falas gravadas em K7 e reproduzidas no toca-fitas do veículo. Dois anos depois da morte da sua esposa ele é convidado para montar sua versão da peça “Tio Vânia” de Tchekhov, peça que produzia quando Oto morreu, ao se reunir com os produtores que o contrataram pela primeira vez eles contam que uma das condições para o empregarem é que outra pessoa seja sua chofer no período que ele está morando na cidade. A motorista é Misaki Watari (Toko Miura) uma jovem de 23 anos que dirige tão bem que o faz esquecer que está em um carro enquanto o diretor escuta repetidamente os textos gravados da peça na voz de sua esposa. Conforme os ensaios vão avançando, Misaki e Yusuke vão criando uma relação mais profunda de identificação mediada pelo texto de Tchekhov e os dois passam a demonstrar a maneira como lidam com as expectativas e as perdas das suas vidas.

Desde a primeira vez que o protagonista aparece no palco chama atenção a técnica de atuação teatral misturando idiomas, enquanto um personagem fala japonês o outro responde em coreano e legendas nas duas línguas e inglês são projetadas atrás do palco. É usando essa técnica que ele monta um elenco para “Tio Vânia” misturando japonês, mandarim, filipino, coreano, língua de sinais coreana, os ensaios são um extenso e repetitivo processo de leitura do texto até que cada ator confie no que está sendo dito numa língua que não fala. Além da interpretação do sentido filosófico disso, essa mistura resulta primeiro num impacto sonoro (por mais que a distância sonora entre as línguas do leste asiático e português seja bastante grande), também obriga o público e os personagens a prestarem atenção em todo resto do que está acontecendo, nas reações de quem e do que está em cena, esse ritmo se estende por diversos momentos de “Drive My Car” sempre ajudando a ressaltar o que não está sendo dito.  

Para interpretar o protagonista da sua peça, papel que o próprio Yusuke encenava no começo do filme, ele escala um jovem ator chamado Takatsuki (Masaki Okada), que fazia uma série de sua esposa e com quem ele tinha visto sua esposa ter um caso anos antes, no prólogo do filme. A escolha do ator no começo é percebida como uma vingança, primeiro por ser um personagem mais velho que o ator, mas conforme o roteiro avança vemos que Vânia e a dramaturgia de Tchekhov possuem poder de invocar impulsos de força, raiva e emoção além do esperado em quem as interpreta e faz o jovem perder cada vez mais o controle. O fluxo de sentimentos se aflora também em Misaki que começa a se abrir com o protagonista e os dois passam compartilhar diversas situações do seu passado e sua trajetória que a leveram ser uma motorista tão talentosa, destaca-se a linda cena em que os dois fumam cigarros com as mãos para fora do teto solar do carro em movimento.

Em alguns momentos “Drive My Car” me lembrou “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, não só pela atmosfera fria e pessimista com um olhar para os personagens que alterna entre solidariedade e a dureza realista que mostra a maneira como o protagonista é incapaz de enxergar o mundo para além da própria imagem. Isso é transmitido a partir da maneira como ele se relaciona com as histórias, “Esperando Godot”, “Tio Vânia” e as ideias que sua esposa tem como uma extensão natural do orgasmo, todas histórias dela nasciam do sexo, ela as recitava numa epifania de noite e de manhã quando acordava as havia esquecido, seu marido então contava para Oto as ideias que tinham surgido na cama. É relembrando uma dessas histórias que o protagonista tem sua principal interação com o ator de sua peça e ex-amante de sua esposa, quando descobre que ela contou para o jovem como aquela história particular termina, mudando a maneira como ele sempre tinha enxergado sua esposa e o amor que ela sentia por ele.

“Drive My Car” é um desses filmes que cresce a cada vez que eu penso nele, cada quadro e cada fala se desdobram em várias possiblidades e a maneira como Hamaguchi dirige seus atores é espetacular, são performances contidas em que cada movimento e cada olhar são eletrizantes e criam ansiedade por pequenas situações. A maneira como o carro, o seu dono e a sua motorista são retratados e interagem deixam tudo com uma atmosfera dinâmica e as 3 horas do filme passam muito rápdas, no terceiro ato quando eles dirigem para o lugar onde Misaki cresceu, lá os dois fazem suas confissões mais pessoas e o filme está pronto para encerrar. Tratando sobre a morte e os mortos e sua confusa relação com quem está vivo, o roteiro de “Drive My Car” dá camadas para infinitas interpretações sobre motivos e ações ao mesmo tempo que é visceral e com muita carga emocional. Esse é um dos melhores filmes de 2021 sem dúvidas e tenho certeza que a partir de agora ele só vai melhorar.

10

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