Crítica | O Grande Segredo (1946)
ESCONDENDO AS TREVAS NA MISE-EN-SCÈNE
Fritz Lang experimenta com diferentes formas de linguagem para fazer filme sobre a desolação da guerra no olhar humano
Fritz Lang já estava há mais de dez anos em exílio auto-imposto nos Estados Unidos quando fez O Grande Segredo, filme sobre um cientista envolvido no projeto Manhattan que é enviado pela inteligência norte-americana para encontrar um fisicista Hungaro raptado pelos alemães durante a segunda guerra.
Fugido para o país por conta de suas origens judaicas, e também por não querer se associar a Hitler após convite de Goebbels, Lang havia encontrado dificuldade de fazer os filmes que queria fazer em Hollywood, constantemente tendo suas ideias limitadas pela moralidade dos estúdios e do país em que trabalhava.
O que gera uma reflexão interessante: Lang foge da Alemanha tanto por sua vida como também por seus filmes, censurados pelo partido Nazista, e chega “na terra dos livres” com imposições paralelas. Se na Alemanha (e na Europa, como um todo), o artista é (mais) livre para pintar como quiser, nos Estados Unidos não apenas o conteúdo, mas a forma sofre alterações. O que fez Lang cada vez mais diluir seus temas e interesses em uma linguagem que os estúdios não falavam e o público apenas sentia. Um diretor de mise-en-scène, ao reprimir suas tendências expressionistas, se tornou fundamental no desenvolvimento do noir e, em uma corrente mais teórica, do Macmahonismo.
Ao tempo de lançamento deste O Grande Segredo, a guerra já havia acabado e o cinema mundial, como sempre, acompanhava. Enquanto o cinema dos campos de batalha refletia visualmente a destruição, dando nascimento ao primeiro movimento moderno no neo-realismo, a maneira como a estética da guerra entrou nos Estados Unidos foi mais sutil, como se aos poucos as sombras e as suspeitas invadissem a redoma do sonho americano, e sempre pelas mãos de artistas capazes de trabalhar em torno dos códigos do sistema de estúdios. Hitchcock não poderia matar a esposa, mas poderia pedir a Cary Grant que passasse o braço em volta de seu pescoço. Lang não poderia filmar sobre o linchamento de um homem negro, mas pode ao menos transformar o protagonista de um advogado em um mecânico.
TRAZENDO A ESCURIDÃO
De certo modo, o próprio título do filme pode ser considerado uma referência ao que se tornou o estilo de Lang nos Estados Unidos. Inspirado em um antigo estilo de luta britânico, onde se esconde a adaga com a capa, o que vemos no longa é uma quase história feliz de um cientista com valores morais que encontra o amor no campo de guerra. Já habituado, Lang parece conseguir conciliar o teor estadunidense das narrativas com seus interesses fatalistas. Em uma cena, é revelado que a filha de um cientista italiano (o filme faz uma espécie de passeio pelas nacionalidades envolvidas na guerra) havia morrido meses antes, e que as cartas que recebia eram feitas por uma impostora. Mas antes que o peso da revelação possa ser sentido, se dá início uma espécie de tiroteio faroeste, onde os mocinhos estão cercados em uma casa pelos vilões. Depois disso, não mais se ouve ou sente sobre a tragédia particular do cientista.
Anos depois, em Os Corruptos (1953), Lang transformaria este luto na mais poderosa das elipses, e tingiria o filme a partir disso. Se já existe certa austeridade na encenação Langiana, um certo silêncio que acompanha o movimento dos atores pela mise-en-scène, naquele filme o mergulho nas trevas se dá de maneira ainda mais vertiginosa, como se aos poucos ele fosse se adaptando e, junto a outros europeus (Hitchcock, Preminger, Tourneur) cada vez mais familiarizados, seu estilo fosse se impregnando de maneira simbiótica aos códigos Hollywoodianos.
Inclusive, talvez onde mais enxergue uma semelhança entre Lang e Hitchcock seja justamente como ambos exploraram com diferentes formas de linguagem dentro desse sistema enrijecido. Pois existem limites. Rossellini jamais poderia fazer seus filmes nos Estados Unidos, onde casa a matéria com o rudimentar, o universo do filme com aquele que o captura. Dreyer, por outro lado, não teria a liberdade de fazer seus questionamentos sobre a fé, seus exercícios de martírio que passam por cima do sacro e encontram algo muito mais sombrio e aterrorizante para a fé norte-americana que a heresia. Mas além disso, não poderiam filmar como filmavam.
Mas não falta a Lang (e a Hitchcock) a ambição artística mais comumente atribuída à escola europeia. O que resulta em filmes como este, onde o que consegue é justamente trabalhar com estes temas por meio de uma mise-en-scène que, como disse anteriormente, poderia muito bem tomar de nome emprestado o do filme.
DE ONDE SE OLHA
“Neste país até os gatos aprendem que não adianta chorar.”
Me atenho à três sequências, que retratam os interesses e a capacidade de Lang de filmá-los, e que também apontam para como o casamento entre o olhar do cineasta e sua organização de cena dão a luz a experimentos que vão além da estrutura narrativa e que revelam também o olhar do filme. Na primeira delas, Lang emula o que Dreyer faria com Gertrud (1964), ao filmar um bloco cênico que centraliza o filme e parece ser o motivo deste existir.
Nela, o professor interpretado por Gary Cooper, até então o protagonista, é acobertado por Gina, uma membro da resistência Italiana, em seu apartamento. Após seus companheiros saírem, os dois ficam sozinhos com a única distância entre eles sendo a barreira cultural: enquanto Jesper tenta ser galante, Gina o recebe com a acidez de quem vive a guerra. A cena, inclusive, se inicia com o olhar desconfiado de Gina pela porta, em um plano que vai da maçaneta até sua figura entrecortada pelas sombras.
Este momento dos dois dura mais de sete minutos e conta com dois planos longos que são intercalados com outros em close-up. Meu palpite é que Lang gostaria de ter excluído estes últimos, e não o fez por, outro palpite, dois motivos: ou por serem parte de uma convenção norte-americana, que já nos anos 40 condizia com a necessidade de familiarizar e relacionar protagonistas e espectadores, ou por serem em sua maioria representativos do olhar norte-americano, intruso naquela situação. De qualquer modo, são planos de composições simples, ainda mais quando contrastadas com a elegância dos planos maiores.
Neles, Lang passeia a câmera pelo cômodo e rearranja seus elementos: no começo da cena, os vemos de pé, na sequência ela se senta frente a um espelho e, no final, se esconde por trás da porta do guarda-roupa para se trocar: um sistema Mizoguchiano, que coloca a mulher como a movimentadora da narrativa, de seus temas e, por óbvio, da cena. Jesper é ali nada se não um mero visitante, o olhar norte-americano naquele mundo escurecido.
Um dos enquadramentos é incrivelmente similar àquele feito por Dreyer em Gertrud, enquanto a cena do vestido (e o retrato, do qual falo a seguir) me lembrou Fênix (2014), filme do também alemão Christian Petzold que, embora seja mais comumente associado à Vertigo (1958), também acontece no cenário da segunda guerra, tem suas cenas centrais em um apartamento e no qual a protagonista é também cantora.
Já no segundo plano longo, Lang desliga as luzes e abre a janela, com a troca da iluminação revelando uma nova configuração da cena. Os dois se deitam em lados opostos: ela na cama, ele no sofá, com o espelho ao meio parcialmente iluminado, agora refletindo Jesper. Ainda falando sobre o gato que mia incessantemente (e o gato só poderia ser preto), os dois passam a se aproximar: Jesper revela seu lado compreensivo, e Gina seu lado doce.
Com uma duração total de 14 minutos, a sequência no apartamento de Gina é finalizada em mais um plano longo, agora dos dois próximos um ao outro. Com o charme de Jesper e o encanto de Gina se encontrando, o professor pega um retrato no cômodo ao lado e Lang aproxima a câmera, ao invés de cortar para o contraplano de sua visão. A partir de então, a câmera acompanha o movimento do retrato, gerando um quadro de Jesper o segurando e então outro de Gina que, com os olhos em direção ao nada, revela que foi tirada antes da guerra. 100 anos atrás, ela completa.
O que me faz lembrar também que Lang é com certeza mais romântico do que sua reputação sugere (o plano dos dois se beijando sobre a ponte, cenas a seguir, o entrega), pois o aparente conforto da cena, da aproximação dos dois, oferece um contraste aterrorizante com a escuridão que os cerca, algo que se torna latente quando os vemos em meio aos escombros e Gina tem mais um episódio de abstenção.
A segunda sequência que aponto remonta aos anos de Lang como diretor de filmes mudos, enquanto este ainda estava na Alemanha. Ao som de uma música Italiana alegre, Jesper e Gina entram em contato com um agente inimigo. Lang filma os momentos de suspense em uma lógica de contraplano, mas diferentemente daqueles de dentro do apartamento, aqui cada plano parece pensado minuciosamente, tanto em suas relações espaciais singulares como em suas conexões. O combate que se segue é filmado de maneira fragmentada: ao invés de abrir a câmera, Lang se aproxima das mãos, pés, rostos e armas. É uma sequência expressiva, banhada à música que se torna em uma melodia agoniante, governando sobre todos os sons.
Mostre esta e a cena anterior sem explicitar sua conexão, e a impressão é que vemos dois filmes diferentes. O que Lang faz é filmar de acordo com o que quer expressar, e se seu expressionismo pode vir pelas sombras e pelo extracampo, ele pode vir também na imagem frontal de uma mão agarrada a um rosto.
A sequência final revela ainda outro interesse de Lang. Enquanto não pode ser acusado de ser neo-realista, não quando sua câmera passeia pelos escombros com a mesma destreza que desvia dos cômodos, já no final do filme ele mais uma vez abre a câmera, agora em campo aberto, para vermos a relação entre os atores e o espaço ao seu redor. Trata-se de um pequeno momento de absurdismo, uma caminhada ala Murnau que descamba em um plano ala Rossellini, onde Jesper olha para o lado e a câmera desliza como que num misto de liberdade e indiferença para com a natureza ao seu redor. Tudo que importa, naquele momento, é Gina.
E Lang, como só poderia ser, e já havia anunciado, corta para um plano romantizado dos dois, que dão um último beijo antes de se separarem. O filme, portanto, só poderia terminar com o rosto de Gina em direção aos céus, sabendo que, ao virar para trás, retorna para um mundo destruído, enquanto Jesper retorna para a terra dos sonhos. Talvez à primeira vista fique a sensação de um romance florescido, mas o que vemos é o cume do jogo de aproximações e separações que Lang realiza em um filme que vai das sombras nascidas na primeira guerra, aos escombros deixados pela segunda. E se por metade do filme acompanhamos a experiência de Jasper, a partir do bloco central o trocamos pelos olhos carregados e constantemente perdidos de Gina.