Crítica | Luca
Antes da crítica, um breve comentário sobre a Pixar:
Na década passada a Pixar lançou apenas quatro filmes originais, sendo que a maioria de seus lançamentos foram continuações de sucessos dos anos 2000 e, com a exceção de “Toy Story 3” e, em certa medida, “Incríveis 2”, não chegaram perto da força dos antecessores. Quanto aos originais, gosto muito de “Coco”, mas “Valente” e “O Bom Dinossauro” parecem ter ficado no meio do caminho enquanto considero “Divertidamente” o filme mais superestimado dos estúdios.
Logo quando começava a questionar se haviam perdido a mão, a empresa decidiu lançar três novas histórias em menos de dois anos e fico feliz em constatar que prefiro cada uma delas em relação a cada um dos mencionados no parágrafo acima (com exceção de “Toy Story 3” e, talvez, “Coco”). Pois o que mais de positivo aconteceu com o estúdio da Disney foi justamente abraçar essa onda de representatividade que pode até ter uma ideia capitalista por trás, mas é executada por artistas que ao menos parecem ter boas intenções e, mais importante, talento. Isso não apenas tornou os filmes mais universais, como também revigorou a fórmula antes de ficar batida.
Pois se “Ratatouille” já trazia uma narrativa sobre minorias e “Wall-E” e “Up” discutiam o capitalismo, foi em “Valente” que esse movimento tomou forma. Após isso tivemos “Coco”, lançado um ano após a eleição de Donald Trump e situado no México; “Incríveis 2”, que trata sobre os papéis de homem e mulher na sociedade; “Soul”, construído em torno do Jazz e um personagem negro (“La La Land” usou Ryan Gosling, por exemplo), além de meio que rejeitar a ideia de religião; “Onward”, que até pode soar conservador, mas é mais sobre conhecermos nossas origens e não nos deixarmos tornar engrenagens (além de conter um certo subtexto lésbico); e por fim “Luca”, o qual comento abaixo, na crítica.
O Cinema da Pixar é um de descobertas, seja de mundos novos ou de si próprio. Constantemente seus pequenos personagens, enquanto atravessam jornadas e obstáculos gigantes, também estão crescendo, mudando, se descobrindo, e lidando com tudo que de pior e melhor acontece na fase mais difícil, mas também mais prazerosa da vida.
Porém nenhum filme - e já são mais de 20 - dos estúdios traz isso tão à tona como "Luca", que além do adolescer se torna pioneiro (na Pixar, claro) em abordar a sexualidade de seus personagens.
Situado na Itália, durante um verão em uma cidade chamada Portorosso (singela homenagem ao filme de Miyazaki, que é talvez a maior influência da Pixar), vemos Luca, um monstro-marítimo adolescente que se transforma em humano quando sai da água. Criado para ter medo, vergonha e evitar contato com o mundo da superfície, sua vida muda quando conhece Alberto, um menino como ele que transita livremente entre os dois mundos.
Caso não fosse óbvio apenas com a sinopse, toda a premissa de “Luca” funciona como uma metáfora para a descoberta, seja ela sexual ou não. O diretor e roteirista Enrico Casarosa comentou o subtexto homosexual, dizendo que fez um filme sobre amizade (até acho interessante a estratégia da Disney em não vender como um filme LGBTQIA+), mas no momento que uma obra chega ao mundo, do mundo ela é, e é curioso como mesmo essa analogia rima com tudo que “Luca” mostra.
Afinal, Luca e Alberto têm de esconder quem são para serem aceitos, sonham em fugir pelo mundo em uma motoneta e precisam, mas não conseguem evitar em se molhar - como acontece em uma cena quando acordam, inclusive. Luca sonha em conhecer o mundo com Alberto, encontra uma liberdade encantadora quando anda na garupa da moto com ele, com medo, mas sendo guiado pelo rapaz. Alberto o ensina a andar (ficar ereto, horas), e a primeira coisa que diz quando Luca passa pela "transformação" é: "primeira vez?". E percebam como a ausência de seu pai se torna um retrato do abandono quando percebemos o que significa.
Mas embora o subtexto seja claro em suas metáforas (a superfície é o armário) e narrativa (a descoberta em si), o cineasta não deixa que isso se torne uma salva de palmas para si mesmo (ou para a Disney/Pixar). “Luca” é um filme divertido e ligeiro, que justifica o uso dos temas na maneira como se constrói. O cenário do verão italiano é propício e, claro, lembra “Me Chame Pelo Seu Nome”, com o protagonista aqui dividindo o nome com o diretor de lá (Luca Guadagnino) e os dubladores italianos tem os nomes trocados (o de Luca é Alberto e vice-versa). Em um momento chave, Luca descobre objetos no fundo do mar que o ligam a Alberto assim como a mão de pedra, mas acredito que o filme de Enrico seja muito mais sútil e converse de forma mais sincera com o público LGBTQIA+ (do qual não faço parte, então não posso falar com propriedade). As crianças provavelmente nem vão perceber diretamente, mas isso de nada as impede de se relacionar emocionalmente com os personagens.
Gosto ainda mais do cenário Italiano por adicionar uma analogia judaica à repressão, algo que o casal de velhinhas, que podem ser irmãs ou companheiras, ilustram de maneira comovente em uma cena que poderia ser até arbitrária, mas toma outras proporções devido à maneira como é conduzida a narrativa. Ainda assim, percebo aqui um problema também presente em “O Bom Dinossauro”, pois o realismo dos cenários destoa do visual mais cartunesco dos personagens, principalmente quando vemos ondas que, por favor, só podem ter sido filmadas (e não foram!)! Virtuosismo técnico por si só impressiona, mas sempre tem de funcionar em conjunto com os outros elementos, felizmente esse contraste é menos perceptível que naquele filme.
O mais estranho é que Luca soa como um filme menor, com uma ambição grande nos temas que aborda, mas com uma jornada pequena - ainda mais pra Pixar. A própria catarse vem sem um ápice de drama e apreensão, sendo que a revelação dos dois gera um atrito apressado, como se quisessem encurtar um filme que merecia 15 minutos a mais. Ao construir toda essa ideia de medo de se revelar, e colocá-los em um local onde os habitantes literalmente querem matá-los (outra surpresa é a facilidade com que falam de morte aqui), fica difícil aceitar que todos do nada percebem como temos de respeitar as diferenças. Vide o mundo onde vivemos, essa decisão trai tanto o próprio filme quanto a realidade.
Além do que, provavelmente até é problematizar demais, mas retratar a cultura Italiana com estereótipos, desde o design dos personagens à massa, e ainda fazer a versão original do filme em inglês e com dubladores sem descendência pode soar um tanto… bem… desconexo? A mim não incomoda exatamente, mas como nos sentiremos quando a Pixar decidir fazer “Neylé”, a história do boto-cor-de-rosa dos pés virados que mora na Amazônia e quer se tornar o maior jogador de futebol e carnavalesco do mundo?