Crítica | Under The Silver Lake
“Corrente do Mal” é um filme que segue martelando em minha cabeça mesmo anos depois de tê-lo assistido.
Tendo no suspense meu gênero favorito, (bons) filmes sobre paranóia e, especialmente, sobre pessoas sendo seguidas, exercem sobre mim um efeito químico e físico que me fazem gravar tal obra na memória por muito tempo. Talvez porque, de tão imerso que fico na narrativa, é como se meus próprios medos e anseios fossem projetados na tela, e que as ameaças ali presentes pudessem cruzar a barreira entre o ficcional e o real. Como se aquela coisa fosse me seguir.
Logo, é curioso que o trabalho seguinte de David Robert Mitchell pareça fazer o contrário: se “It Follows” funciona ao jogar para o outro (ou para nós) a paranóia e o medo, “Under The Silver Lake” pega o mundo em que vivemos e transforma em uma história, em uma narrativa que existe apenas para aqueles que nela vivem. Tendo suas origens, entre outros exemplos mais antigos, na metalinguagem de “Pulp Fiction”, mas se assemelhando de verdade ao clássico “Cidade dos Sonhos”, este filme constrói com símbolos uma narrativa sobre estes, colocando no personagem de Andrew Garfield a nossa necessidade de estar sempre procurando significado (explicando, desvendando, achando pelo em ovo) em coisas que… apenas existem.
Na pele de Sam, um vagabundo de 33 anos que mora em Los Angeles e não faz absolutamente nada da vida a não ser espiar os outros e consumir o quanto pode de cultura Pop, Andrew Garfield vive seu melhor papel até aqui, superior até ao seu belo trabalho em “Silêncio” (seria a própria idade dele uma alusão à Jesus?). Completamente entregue, acreditamos que ele realmente não faz nada a muito tempo, desde sua barba mal feita, à seu físico que um dia foi do “Homem Aranha”, à naturalidade com que usa binóculos para ver os peitos da vizinha que vive rodeada de animais. Ele é a personificação do filme onde está inserido, inundado de referências, desde as mais óbvias como pôsteres de “Janela Indiscreta” e “A Criatura da Lagoa”, à outras que aparecem apenas para os que já assistiram aos filmes. Em certo momento, ele segue alguém e conforme dobra as ruas, e os fades determinam a passagem de tempo, nos lembramos de “O Corpo que Cai”. Em outro, ele se apoia em uma lápide… preciso dizer de quem?
Mas se um diretor menos talentoso pudesse fazer o filme soar como uma salva de palmas para si mesmo, David Robert Mitchell desponta aqui como um dos melhores nomes dessa geração. Pois se “It Follows” já não temia em seguir as convenções de gênero e funciona justamente por utilizá-las em prol da narrativa, aqui ele utiliza essas referências infindáveis como recurso para construir o tema principal de seu filme. Em suma, “Under The Silver Lake” é sobre símbolos, desde a linguagem, à iconografia da cultura Pop, à praticamente tudo a nossa volta. Por isso, a própria estrutura lembrar “Cidade dos Sonhos” (ou o recente “Vício Inerente”), com pontas do curta (que virou longa) “Lights Out” e “Cats” (ok, brincadeira, mas quem viu, sabe do que estou falando - inclusive, me CAGUEI nessa cena), se torna uma qualidade do filme, que usa o misticismo de Los Angeles à enésima potência. Algumas sequências não fazem sentido, outras não se preocupam em fazer, outras sugerem um sobrenatural que jamais é “explicado”, outras nem precisavam estar no filme, algumas são até dispensáveis, mas mesmo que o segundo ato se torne um pouco enfastiado, até isso serve como relação com o mundo onde o filme é baseado. Se você se cansou - como eu - em qualquer momento de “Under the Silver Lake” é porque essa orgia de conteúdo, na ponta de nossos dedos, é exaustiva.
Não que isso seja um problema, pois fiquei engajado desde os primeiros minutos até o fim da projeção, algo que muito se deve à forma como Mitchell utiliza da trilha do artista Disasterpeace, apostando em acordes graves e quase exagerados em cenas cotidianas como que sugerindo um macabro inerente, e excluindo completamente o som nas sequências mais tensas, nos fazendo até mesmo sentir um certo conforto pelos temas comumente associados ao Cinema de Horror. A fotografia de Michael Gioulakis me pegou comparando os orçamentos desse e de “It Follows”, mostrando como alguém talentoso consegue trabalhar independente do que tenha em mãos: se naquele filme ele mistura uma maior granulação com luzes indiretas para dar um ar retrô, sem vida, para representar o estado afetado da protagonista, nesse tudo parece brilhoso, tinindo, com grandes angulares que distorcem rostos e cenários e que são mais do que apropriados para uma metalinguagem quase fantasiosa como essa - e é interessante ver como o design de produção de ambos os filmes acompanha essas decisões, situando o primeiro em algum ponto incerto do passado, e o segundo justamente onde ele acontece, no mundo de ícones em que vivemos.
Tendo auxílio de um especialista em códigos na produção do roteiro (que me fez imaginar o quão difícil deve ser escrever algo assim), Mitchell consegue fazer o mistério parecer menos interessante do que tudo que ocorre a sua volta justamente por revelar, no flutuante processo de investigação, indícios das teorias da conspiração que Sam tanto ama. Partindo de uma origem também simples, ele quer apenas encontrar a vizinha bonita com quem passou um único dia. Mas por que? Ele se apaixonou por ela? Viu algo nela que o fizesse querer mudar de vida? Eu acho que não, acho que ele apenas viu uma oportunidade de, por pelo menos alguns dias, fugir do mesmo de sempre, em sua busca eterna por entretenimento, por mais vazio que este possa ser. Uma das minhas sequencias favoritas, inclusive, envolve o “compositor” dizendo que escreveu as músicas das últimas três gerações (ele cantando Backstreet Boys é hilário), tirando significado até mesmo da própria arte, que para nós significa tanto, ao descobrirmos que ela foi feita não com paixão, mas com desdém.
Talvez por isso, eu considere seu final a parte que menos gostei de todo o filme, mas não posso, de maneira alguma, dizer que ele não faz completo sentido. Com uma construção fascinante que me deixou pronto para coroar esse como um clássico à espera de ser descoberto, sinto como se o filme fizesse por merecer o final ambíguo e abstrato que outros diretores tanto tentam e tanto falham em atingir. Logo (spoilers a seguir), ao finalizar mostrando que toda aquela conspiração não passava de… nada, minha primeira sensação foi de… vazio. Sim, o mesmo vazio da vida de Sam, que olha (do apartamento da dona peituda) sem nenhuma preocupação os oficiais entrarem em seu quarto para despejá-lo, que precisa procurar significado em tudo que assiste e consome para fugir do tédio. Então até nisso, em provocar essa sensação de “quero mais”, “Under the Silver Lake” sucede, pois um filme sobre símbolos só poderia te manipular para acreditar que eles querem dizer alguma coisa quando, no fim, não querem dizer nada.