Critica | Pássaros de Verão

Admito que fui enganado por “Pássaros de Verão”

Inicialmente, graças a uma introdução que parecia focar sua história em torno da personagem de Natalia Reyes, julguei que assistiria à um filme essencialmente Colombiano sobre uma jovem e a cultura limitante a sua volta. Ela, rejuvenescida pela maquiagem - um trabalho sutilmente esplendoroso, diga-se, porque julgava ser uma pré adolescente -, está coberta por um véu vermelho (claro) que vai da cabeça aos pés, e participa de um ritual onde tem de dançar com vários outros jovens em uma espécie de dança do acasalamento - na qual o pretendente não pode ser derrubado - que simboliza a maturidade da moça na cultura Wayuu, uma etnia indígena do país. Durante a dança, um jovem visivelmente mais velho se mantêm em pé e fala, em seu ouvido, que “ela será sua mulher”. Pela aresta em que enxergamos seus olhos, é possível ver preocupação, medo e um senso profundo de saber que seu destino não mais depende de si.

Se seguisse nessa linha, este filme do casal Ciro Guerra e Cristina Gallego - que se separaria durante as filmagens (!) - seria um belo acompanhamento para o magistral iraniano “A Separação”, mas o que vimos fora apenas uma das muitas sub-tramas que compõem este quase épico que deveria ter três horas de duração. Digo isso, pois o principal empecilho que impede “Pássaros de Verão” de se aproximar de obras máximas do cinema como “Cidade de Deus” ou, sim, “O Poderoso Chefão”, é justamente o fato de que suas gigantescas ambições nunca caberiam nas duas horas em que fora limitado.

Contando a história em quatro capítulos, fica claro como as transições entre cada um deles parecem esconder passagens importantes da narrativa como, por exemplo, o fato de Zaida (personagem de Reyes), passar de todas as emoções que descrevi acima para uma esposa feliz ao lado de seu marido que, literalmente, a comprou. Ou como Leonidas (Greider Meza) evoca o Filé com Fritas. Ou como Moisés (Jhon Narváez) se transformou em uma versão mais fracassada de Zé Pequeno. Ou como Rapayet (José Acosta) foi de um pé rapado para uma versão também menos competente de um jovem Don Corleone. E se ao ler estas descrições seja difícil costurar os pontos da premissa, exemplifico assim: em uma região remota da Colombia e dominada por indígenas nos anos 60, um jovem entra para o tráfico de drogas, e construir o próprio império, entra em conflito com a familia Pushiana, que comanda as ações criminosas do local.

Conceitualmente carregado com munição para muito mais tempo de guerra, é impressionante como em seu primeiro capitulo o roteiro da dupla Maria Camila Arias e Jacques Toulemonde Vidal é capaz de nos tornar apar das tradições Wayuu e, principalmente, da forma como seu povo leva a vida. Expondo apenas o necessário para se fazer entender, somos apresentados aos costumes retrógrados que transformam mulheres em objetos que devem ser comprados, às situações precárias que não permitem que crianças estudem e, principalmente, à forma como aquele povo - e tantos outros - são vistos pelos turistas estrangeiros. Inteligentemente ligando o fato de Rapayet precisar de dinheiro para poder se casar com (comprar) Zaida, à busca por drogas de pessoas que, em teoria, deveriam estar ali para melhorar a situação do local, o roteiro consegue uma forma orgânica de inserir-lo no mundo não apenas do tráfico, mas do capitalismo, como seu companheiro Moisés se gaba num momento onde fica claro que o dinheiro subiu a sua cabeça completamente despreparada para ter-lo.

A partir dali, entramos num verdadeiro drama envolvendo poderosas famílias da mafia e é uma pena que, ao desenvolver tão bem as visões contrastantes de Moisés e Rapayet (ainda evocando Zé Pequeno e Bené), acabe deixando de lado Zaida, a maior vítima de toda aquela situação. Penso que pode ter sido justamente para demonstrar como naquela, e em tantas outras culturas (incluindo as nossas no Brasil), a voz da mulher é praticamente silenciada, mas após uma primeira cena tão envolvente com aquela jovem vestida de vermelho, não consigo deixar de lado a sensação de que sua parte naquela história fora extremamente mal aproveitada.

Porém, se o filme perde pontos por omissão, o que vemos em tela é uma sucessão de acontecimentos inesperados e, em grande parte, chocantes que permitem que a vagarosa narrativa se torne mais envolvente a cada cena, mesmo com seu ritmo aparentemente vagaroso tomando conta da maior parte da projeção. É interessante analisar, também, como a própria inexpressividade de Rapayet em tantos momentos onde esperaríamos reações mais emotivas apenas refletem o que conheceu deste mundo. Para ele, a morte é algo ruim, sim, mas figura mais como um caminho que deve ser trilhado do que algo que despedace sua alma. E embora acreditemos que se importe com sua esposa e filhos, o fato de - spoiler - não se arriscar por eles pode ser uma decisão nada Tarantinesca, mas que oferece uma visão realista sobre o traço mais poderoso da psique humana: o medo.

Este que, para citar outra obra envolvendo a máfia, vem na figura inabalável de Úrsula (Carmiña Martínez), uma espécie de Russell Bufalino (interpretado por Joe Pesci em “O Irlandês”) da família de Zaida. Aparentemente uma mulher ligada mais aos costumes que à própria família, conforme o longa avança percebemos que no meio de assassinos e estupradores, é sua frieza que mais gera arrepios, justamente por demonstrar ter conhecimento o suficiente para que saiba o real impacto de suas ações.

Filmado com o que parece ser luz natural, as lentes do diretor de fotografia, David Gallego, conseguem captar toda a beleza do deserto em que vivem os Wayuu sem jamais deixar de transmitir a aridez que o mesmo injeta em seus habitantes, construindo planos belíssimos, como aquele expansivo onde Zaida admira o por do sol, ou outros mais fechados que ressaltam tanto as essencialmente vividas locações - que contam com diversos não atores, precedendo o que “Bacurau” faria um ano depois - como os sentimentos conflitantes de seus personagens. Aquém de qualquer trilha sonora que não os sons e cânticos locais, “Pássaros de Verão” se mostra tão implacável como o calor daquele deserto, tanto que, mesmo sem presenciarmos seus muitos atos de violência, somos capazes de sentir como cada um deles reverbera em toda a comunidade.

No capítulo e ato final, nos é revelado o tema central de toda a narrativa que, além de servir como uma análise sócio-cultural extremamente rica, vai ainda mais a fundo e discute os valores morais e as virtudes que regem seus personagens tão humanos. Vejam como Aníbal, patriarca dos Pushiana, considera imperdoável o ato de violência cometido por Leonidas, mas considera comprar mulheres algo aceitável e não pestaneja em cometer um legítimo crime de guerra ao matar um mensageiro que, acima de tudo, fora seu amigo. Inteligentemente aliando a presença crescente dos gafanhotos com a devastação física e moral causada pela guerra, a dupla de diretores compõe um ato final fúnebre e aterrador, abrilhantando a situação com poéticas frases realistas o suficiente para não soarem forçadas. “Você sabe o que acontece com uma família na guerra”, diz a única personagem aquém de desvios morais - explícitos - em todo o filme.

Intenso e capaz de ficar com você por dias após ser assistido, “Pássaros de Verão” é um dos melhores filmes sulamericanos e um dos melhores filmes sobre a máfia dos últimos tantos anos. Tivesse a liberdade de se extender pelo tempo que fosse preciso para contar sua história da melhor forma, e poderíamos estar falando de uma legítima obra prima.

Onde está a netflix - e o scorsese - quando se precisa dela?

8.5

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