Crítica | Estranho Encontro
hitchcock à brasileira
Em sua estreia, Walter Hugo Khouri, já mostra a que veio, mas se desinteressa no meio do caminho
Volta e meia chamado de Bergman brasileiro - por mais que Buñuel, Antonioni e até Lynch sejam “adjetivos” tão ou mais apropriados -, Khouri é talvez o cineasta mais a parte do movimento histórico do nosso Cinema, mesmo que faça isso sendo de vital importância para nossa imagem como Brasil em tela.
Não são só os serrados, sertões e favelas que representam a magnitude desse país, mas também os sítios e propriedades fechadas, a serra gaúcha, um apartamento na zona mais urbana de São Paulo, Rio, um porto que vê navios chegarem e saírem. O Brasil é gigante, e Khouri o explora de fora pra dentro, com especificidades que, ao mesmo tempo em que limitam suas amostras - existem muito menos donos de sítio do que sobreviventes em barracos -, aprofundam seus temas e seus comentários sobre a sociedade e a natureza humana.
Se o Cinema Novo mostrava a pobreza para se aproximar dela, Khouri mostra a riqueza como maneira de demonstrar a decadência moral que cada vez mais afasta esses dois extremos.
UM CINEMA EM FORMAÇÃO
Khouri tinha apenas 29 anos quando fez Estranho Encontro, um filme tão Hitchcockiano que chega a ser um pleonasmo apontar. Engraçado que relembra alguns elementos do Cidade dos Mortos (1960), mas mais ainda que visivelmente faltava Hitchcock lançar sua obra prima pra Khouri poder finalmente encontrar o balanço de seu próprio Cinema - além é claro da experiência por trás das câmeras. Já há aqui um certo afeto pelo olhar, por trás de cortinas, árvores, brechas nas portas, mas faltava “aquilo” que Vertigo (1958) trouxe.
Com um começo que definitivamente parece ter servido de influência pro Cinema do Lynch (se foi, é outros 500), principalmente Estrada Perdida (1997) e Mulholland Drive (2001), a atmosfera é estabelecida na primeira cena, com o protagonista trocando no rádio uma música melancólica, que até então não surgia como diegética, por outra mais animada, mais alienante. Alienação essa que rege a vida de Marcos, vivendo encostado em uma mulher rica e aparentemente conformado com a própria situação, mas que vê na figura de Júlia (mais Hitchcockiana, impossível) uma maneira de escapar.
E não só pela beleza da guria, uma beleza clássica, digna das estrelas norte-americanas dos anos 50-60, mas pela situação esquisita, pelo mistério que apresenta. Revendo o início do filme, sabendo do fim, o que inicialmente sugere horror e suspense se torna algo quase digno de pena, um estado imutável de estagnação, representado no lago, implacável e imóvel, que obviamente já evoca tantas outras coisas.
O que tem de estranho não é a habilidade de Khouri de encontrar e construir essas esquisitices - alguns toques são geniais desde ali: o voyeur intrometido do caseiro, não vermos o rosto do homem apaixonado por relógios, a identidade metamórfica da prima/amante/dona do local -, mas sim como ele parece se entediar cedo com o filme que filmava. Apesar de ter momentos intensos, Estranho Encontro possui uma certa burocracia que se extende além do necessário, como se Khouri entrasse no piloto automático e o filme ficasse tempo demais sem ir para lugar nenhum.
As repetidas cenas dela na casa, e até a lógica de relações entre os quatro parece demorar pra engatar, como se aquela estilização sugestiva do começo desse lugar à planos apenas operacionais. O que até pode ser uma maneira de mostrar como o lugar é tão estagnado que a própria narrativa se entedia, mas soa mais como Khouri já pensando no que fazer a seguir.
LAURA, REBECCA, JÚLIA
De todos os filmes de Hitchcock, certamente o que mais remete a esse é Rebecca (1940), tanto em pontos do próprio roteiro - ela se abrigar em um casebre perto do lago, o/a caseiro/a intrometidos -, mas principalmente na construção da imagem idealizada da personagem título e o assombro que essa imagem provoca. Aqui, no caso, é Júlia quem se torna a assombração que destrói a paz (induzida pelo dinheiro) da casa de Wanda (Lola Brah traz consigo os traços russos que a tornam perfeita para o papel), mas é a jovem quem sofre com o poder opressivo da ricaça.
Mas talvez o traço mais interessante de Khouri, que já pode ser observado aqui, é a união destrutiva das duas personagens, coisa que ele exploraria em diversas obras subsequentes. Wanda protege Júlia do ex-marido esquisitão, e abençoa a ela acabar com seu estilo de vida ao levar Marcos embora. Talvez se vendo no rosto da jovem, ou cogitando substituir Marcos por ela em algum momento, mas ultimamente se recolhendo à própria tragédia pessoal - não muito diferente do que acontece com Laura em Laura (1944) e Rebecca, porém, tendo de viver na casa onde sua própria natureza a assombra. Que os arredores sejam apenas o mato de onde outras assombrações surgem, torna seu isolamento ainda mais aterrorizante.
Apesar de não se aproximar dos filmes citados, ou dos melhores de seu diretor, Estranho Encontro é uma estreia intrigante e um ponto de estudo essencial para entender o que fez de Khouri um de nossos artistas mais fascinantes e, infelizmente, subestimados.