Crítica | O Irlandês

De certa forma, o trabalho de Martin Scorsese e Quentin Tarantino está profundamente conectado.

O segundo, aberta e obviamente, se inspirou no primeiro, que já havia se consolidado como um dos maiores de todos os tempos mesmo antes de Tarantino lançar seu primeiro filme. A violência, o uso de diálogos aparentemente frívolos, as narrativas pouco convencionais, a ideia de ironia e deboche estampada em cada trabalho. Logo, em um ano onde ambos os cineastas - que agora sentam lado a lado no panteão dos grandes da história do cinema - lançam projetos de extrema relevância que podem, muito bem, ser uns dos últimos de suas respectivas carreiras, é apenas justo que comparemos as duas obras. O fato de elas estarem intrinsecamente conectadas apenas torna tudo ainda mais fascinante.

Em O Irlandês, Scorsese retoma o projeto que havia adotado em 2007, baseado no livro I Heard You Paint Houses de Charles Brandt que, supostamente, envolve as confissões de Frank Sheeran (interpretado por Robert De Niro), oficial do sindicato dos trabalhadores nos Estados Unidos suspeito de ter envolvimento com a mafia e com o assassinato de John Kennedy e Jimmy Hoffa (interpretado por Al Pacino). E embora a premissa já encaixe diretamente no cânone Scorsesiano, que já inclui filmes como Caminhos Perigosos, Cassino, Os Infiltrados e um tal de Os Bons Companheiros, a direção tomada pelo cineasta, aqui, não poderia ser mais diferente de todos estes citados acima. Enquanto aqueles mostram os excessos, as figuras idolatradas do submundo e enfocam na violência envolta em suas vidas, este é quase como uma longa e paciente meditação sobre a vida e sobre como, em algum momento, nossas decisões cobrarão seu preço.

Apesar de ser o natural, vou me segurar para falar de Scorsese (e da comparação com Tarantino) mais a frente, pois esta produção da Netflix representa o que de mais puro há no cinema em cada uma de suas arestas, algo que inclusive levou um colega meu do Outra Hora a comentar que chega até a ser “cinema demais”, uma piada involuntária com toda a polêmica envolvendo a Marvel.

Agora, divago e aviso, são três horas e meia de filme e não tenho intenção alguma de ser breve ao comentar sobre elas.


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Sem sombra de dúvidas, este é o melhor roteiro da carreira inexplicavelmente inconsistente de Steven Zaillian, que fora responsável por obras como A Lista de Schindler, Millenium (o de Fincher) e Moneyball: O Homem que Mudou o Jogo, e também pelos fracos Exôdo: Deuses e Reis e Operação Red Sparrow, para citar alguns. Com o auxílio não creditado de Brandt, Zaillian não tem pressa alguma em desenvolver a história e seus personagens, aplicando de forma magistral a narração de De Niro para situar o incontável número de acontecimentos e, por mais que as vezes seja fácil se perder em meio a este mar de informações acerca da máfia e da política Norte-Americana dos anos 50-60, é apenas por conta da quantidade e não da qualidade da mesma, pois um talento inegável do roteirista é pegar assuntos complexos e adaptá-los o suficiente para que, ao mesmo tempo que despertam o interesse dos espectadores, não deixem de esconder surpresas possíveis apenas para aqueles mais atentos.

Aí entra a habilidade do elenco em executar suas falas e, em meio a uma infinidade de personagens que deixaria Vingadores: Ultimato (o qual eu amei, diga-se) com inveja, é claro que os nomes de De Niro, Joe Pecci e Al Pacino merecem o maior destaque. Nesse ponto, tenho que comentar sobre o quão grato devemos ser por podermos assistir a um filme sem restrições de duração e me adiantar ao trazer o nome de Scorsese, que sempre encontra os melhores ângulos para deixar seus personagens existirem em tela. Porque, além de apenas falar, eles pensam, sentem, repensam e lutam contra seus próprios demônios antes de tomar qualquer decisão. E são nos pequenos maneirismos de Pacino, em um olhar aprofundado de Pecci, em um sorriso dolorido de De Niro, que conseguimos entender quem são aquelas pessoas de verdade e para onde a história está indo, mesmo que isso não seja dito. Pisque em alguns destes momentos, e pode se ver perdido logo na próxima cena.

Não seria exagero dizer que os três deveriam ser indicados ao Oscar de 2020, mas vou além e digo que se não fosse por Brad Pitt (no filme de Tarantino!), a briga pela estatueta de Melhor Ator Coadjuvante deveria estar entre o Jimmy Hoffa de Pacino e o Russel Bufalino de Pecci, dois exemplos quase opostos de seres humanos, por mais que façam questão de se portar como homens elegantes e honrados em público. Um é explosivo, impulsivo e orgulhoso, enquanto o outro parece o ser mais amoroso do mundo até que um simples olhar revela o monstro frio e cruel que se esconde atrás de gentilezas. Em duas cenas distintas, onde seus personagens conversam com o Frank de De Niro, Pacino está bem ao centro de um raio de sol que lembra quase um holofote vindo dos céus, enquanto Pesci é enquadrado de forma que a luz brilha em tudo, menos em seu rosto, escurecido pelas sombras.

Aliás, aproveito esta deixa para empurrar a conversa sobre De Niro lá para baixo, e abordar em como a fotografia de Rodrigo Prieto (responsável também pelo magistral Silêncio, embora sua colaboração com Scorsese em O Lobo de Wall Street ecoe mais nesta obra) tem papel essencial no impacto emocional do longa - que se mostrará apenas no ultimo ato -, pois enquanto assistimos às memórias de Frank, o sol parece sempre brilhar no rosto de seus personagens e, na ausência deste em cenários fechados, a luxuosidade daquele modo de vida nunca deixa de ser lustrosa, mesmo que pareça sugar a vivacidade presente nas tomadas externas. Scorsese nos brinda, também, com planos abertos de tirar o fôlego que quase sempre exaltam um belo céu azul, que se torna propositalmente branco e lavado - assim como as cores envolvendo seus personagens - quando o tom da narrativa muda para o melancólico final.

A trilha sonora, comandada por Robbie Robertson (outro colaborador frequente), é cirúrgica ao embalar os primeiros dois terços do filme com uma série de composições exuberantes, evocativas dos anos 50-60, que, regadas à sax, trompetes e uma pontual gaita de boca, jamais deixam os extensos diálogos soarem maçantes, justamente por resumirem diversas cenas como divertidas montagens onde cada música parece se esticar por mais de 10 minutos.

*Curiosidade: há, na trilha sonora oficial, a presença da canção "El Negro Zumbón", composição do músico italiano Armando Trovajoli influenciada pela música baiana.

Porém, se O Irlandês jamais se torna arrastado (mesmo que uma ou outra sequência pareça exceder sua duração necessária) é principalmente graças à primorosa edição de Thelma Schoonmaker, vencedora de três Oscars por seu trabalho de meio século com Scorsese. Abusando da melhor forma das variações de planos do diretor, que jamais utiliza a câmera na mão sem o uso da steadicam, Thelma consegue transformar simples conversas em momentos inquietantes e conecta as mais estáticas tomadas em cenas dinâmicas e envolventes. Auxiliada pelo sútil, mas eficaz design de produção e pelo esplendoroso uso de efeitos visuais que nos faz acreditar que De Niro é uma espécie de Benjamin Button, ela é eficaz também em ligar as diversas linhas de tempo com fluidez, mesmo sem o uso de exposição para explicar aonde e quando nos encontramos. Já a escolha de colocar com letreiros e freeze-frames a data da morte de alguns personagens, apesar de formar uma rima temática com o tema principal da narrativa, pode e deve provocar uma certa confusão por parte do público.

Finalmente e assim como em todos os seus grandes trabalhos, Martin Scorsese é o maestro que rege uma orquestra escolhida a dedo.

Embora seu envolvimento em cada área da produção de cada projeto seja extensivo, há algo de mágico na forma como o diretor compõe a misé-en-cene que nenhuma teoria ou estudo de linguagem cinematográfica é capaz de explicar. Após tantos anos, mas desde o início de sua carreira, Scorsese simplesmente sabe como fazer cinema e, embora provocar emoções nunca tenha sido seu objetivo e sim uma consequência das discussões filosóficas que sempre se propôs a promover, é inevitável não se sentir profundamente tocado ao chegar ao final de “O Irlandês” que, sob todas as camadas de roupas pesadas, posturas intocáveis e egos inflados, é uma síntese da mortalidade e decadência de homens que viveram sem consequências por tempo o suficiente para, no final, se arrependerem ao conhecê-las.

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Voltando a mencionar o Oscar, declaro tranquilamente que nenhuma atuação em 2019 me arrebatou mais do que a de De Niro, nesta que é sua nona colaboração com Scorsese, e pode muito bem ser considerada uma das melhores. Por baixo de toda a violência que adotou como modo operandi para sobreviver e subir na vida, está um homem genuinamente bom que jamais pôde entender o porquê de a filha (uma ótima personagem, mas interpretada de forma engessada em suas duas versões) não simpatizar com um amigo em especial e, sim, com o próprio pai. Mas também podia, pois o único momento onde Frank percebeu o que fez de errado foi quando se viu sozinho e, na magistral cena final, onde o mesmo diz para que o padre deixe a porta aberta, vemos como mesmo tão próximo do fim o medo e insegurança provocados por uma vida de mentiras ainda continuam a assombrá-lo.

E, continuando a falar sobre as estatuetas douradas, muito do hype da próxima cerimônia se dá ao fato de que seus dois principais favoritos são, justamente, O Irlandês e Era Uma Vez Em Hollywood, filmes tão próximos um do outro que soam como uma piada conjunta.

Um é cômico e irreverente, enquanto o outro é melancólico e procedural. Um é sobre os excessos, outro sobre o preço que estes cobram. Um é sobre pessoas que buscam o estrelato, outro, sobre seres que buscam, acima de tudo, o anonimato. Mas ambos dividem a mesma principal característica: são pacientes e dedicados estudos de contemplação de seus realizadores que, ao retornarem para épocas similares, mas em mundos que não poderiam ser mais distantes, oferecem dois lados de uma mesma moeda.

As coincidências não param por aí: DiCaprio, segundo ator mais prolífico de Scorsese, está apenas no filme de Tarantino, enquanto Harvey Keitel, figura carimbada nos primeiros trabalhos de Tarantino, está apenas no filme de Scorsese. Já Al Pacino aparece em ambos e, de certa forma, em personagens semelhantes tanto em personalidade como em função, servindo como mentor tanto para De Niro como para DiCaprio. O próprio uso da luz do sol se prova um elemento recorrente em ambos os projetos, além é claro da ligação italiana entre os personagens de De Niro e DiCaprio.

Fadados à diversas nomeações nas mais variadas categorias, Melhor Direção e Melhor Filme saltam como as que provocam maior antecipação. Qual dos dois, se um deles, vai sair vitorioso?

A resposta importa menos do que a pergunta, pois presente maior do que o homenzinho dourado, é ter um 2019 com obras primas destes dois mestres.

9.8

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