Crítica | King Kong (1933)

Visitando uma Natureza Explorada

Um fóssil da Era de Ouro de Hollywood


Há algum tempo, veio ao meu encontro uma imagem da armação original usada no processo de stop motion de King Kong (1933). Já tinha plena consciência de sua existência e me lembro de ter visto King Kong (2010) de Peter Jackson quando era pequeno, mas a distância tecnológica e o visual de filme B da obra original ainda não me motivavam o bastante para rever sua história. Esse achismo ultrajante foi quebrado quando enxerguei a armação, e logo visualizei naquele enferrujado e mirrado corpo metálico, a imagem de um vestígio antepassado, um esqueleto metálico e fossilizado, de tal maneira perpétuo no grande museu (ou depósito funerário) da história do cinema que parecia uma ossada jurássica escavada com um êxtase controlado pelas mãos do paleontólogo. As linhas corpóreas cinzentas e articuladas, o crânio esburacado e as presas ainda pontiagudas despertaram em mim uma curiosidade mórbida sobre aquele resquício mecânico, quase como um ator-zumbi taxidermizado, e foi essa curiosidade que levou a visitar a obra original, como um criança que quer decorar o nome científico de um dinossauro mesozóico. 

King Kong é uma das histórias que está tão submersa na cultura popular que é capaz de ser esquecida de tão memorável aos olhos do público. A narrativa trata do desastroso incidente envolvendo um gorila mastodôntico trazido de uma ilha remota por um diretor de documentários para ser exibido para a alta classe. No entanto, o espetáculo fracassa quando o animal escapa e ataca a cidade de Nova Iorque descontroladamente.

A violência provocativa pelos olhos do fantástico

Diferente das releituras modernas que buscaram encontrar narrativamente um meio de “humanizar” a história e justificar a fúria do macaco, a obra original é menos expositiva, se aproximando muito mais do gênero “filmes de catástrofe” e não dosando esforço para criar um legítimo horror gráfico nas cenas de destruição: no ataque de Kong a tribo da ilha, vemos os indígenas sendo pisoteados, esmagados ou mastigados tanto em monumentais planos gerais de corpo inteiro do monstro como em cruéis close-ups do fechamento de sua mandíbula em um corpo desesperado ou de seus pés triturando um nativo sobre a lama, tudo isso dotado de uma frontalidade completamente indiferente e, de certo ponto, até provocativa em sua violência. Como na cena onde o trem é descarrila no ataque a Nova Iorque, o diretor dilata a cena através da montagem alternando entre a perspectiva interna do vagão, a visão do trem se aproximando e a de Kong se apressando para destruir a ponte de sustentação. 

O efeito de alongar a distância até o momento do choque causa uma ponderação imediata, ao menos para o espectador moderno: por que tudo isso não é dramático? O desastre é iminente, os desafortunados passageiros são inocentes e débeis contra um monstro colérico e primitivo, ainda assim, não há sentimentos de medo ou compaixão, nem sequer justiça ou vingança por parte do monstro. Apesar de não haver um esforço significativo do filme para desenvolver uma relação dramática, o espectador divide a culpa ao se sentar e desfrutar da resolução de cena.

“A visão direta e naturalmente impossível ganha todo o seu poder de atração justamente pela espetacular precisão com que o fantástico parece real na tela”

Ismail Xavier

 O “sadismo” do espectador em ser envolvido pela tragédia pode pode-ser explicado pelos olhos do gênero, ainda que se sustente a partir da credibilidade do fato, a ilusão imagética proporcionada pelo fantástico (e também pelo terror) rompe com nossa realidade por esse poder de atração comovente, logo a história que experienciamos é paralela a nossa realidade por todo misticismo e fantasia que a circunda, e esta distância realista e segura entre o espetáculo e o público, entre a tragédia e a plateia que a visualiza, é o que conforta o espectador. Ademais, em um breve parênteses, devo citar que o ato de “romper com a realidade” era essencial para o público norte-americano em 1933, ainda não recuperado espiritual e  economicamente da Grande Depressão.

A ilusão do fantástico (quando bem construída) carrega consigo uma carga de símbolos e intertextualidade de temas, mas o que mais envolve o espectador, além das questões técnicas, é o senso de aventura. A materialização do inimaginável mediante a uma narrativa fantástica, alinhada a um forte desejo de desbravar esse inexplorado são pensamentos universais e recorrentes na psique humana, tanto do ponto de vista físico ou psicológico, esta ideia fascinou e fascina até hoje nossas histórias, sobretudo quando estão relacionadas a algum aspecto natural: há uma sensação masculinizante em domar a natureza, em deixa-la submissa a minha vontade de demonstração de força. 

“Por capricho da natureza, não por ignorância do homem. Nenhum erro foi cometido no trabalho. Mas não podemos impedir que o equilíbrio produza os seus efeitos. Podemos enfrentar as leis humanas, mas não podemos resistir às leis naturais.”

Júlio Verne em 20 mil léguas submarinas 

King Kong, apesar de antagonizar contra humanidade e simbolizar o instinto primitivo distante, é igualmente um elo entre o homem moderno e o homem primitivo, ele personifica a força animal que destrói o espaço a sua volta, pois da mesma maneira que o homem invade a paisagem idílica e esgota seus recursos naturais através da tecnologia, Kong invade a metrópole turbulenta e manifesta seu domínio pelo aço torcido, vidros partidos e letreiros quebrados.

 O conflito nasce do atrito entre a natureza inerente do ser contra seu desejo consciente, e falando de um monstro de proporções homéricas, nada mais condizente que uma tragédia típica de uma obra greco-romana: um interesse romântico impossível. Ann Darrow (Fay Wray) parece possuir uma presença mágica, destoando dos cenários e demais personagens frente a câmera. Mais do que isso, ela é desejada continuamente pelos homens daquele universo: sobre os olhos do diretor ela é a musa do filme, para o capitão do barco a futura esposa, para o cacique da tribo a agradável oferenda, e para Kong é a antítese daquele mundo selvagem em que ele habita, uma flor delicada e bela da qual ele desnuda as pétalas do vestido no alto do seu covil com afeição e ternura. 

Assim, através da encenação e não da expressão, a manifestação unilateral da força animal ganha as mesmas camadas de um herói troiano, seu sentimento pela moça substitui o seu instinto de sobrevivência visceral, e pela primeira vez no filme, quando Kong leva-a para o topo do Empire State Building, o plano o mostra não como um hercúleo monstro, e sim com uma proporção semelhante à de um homem escalando uma montanha. E, quando despenca do topo do prédio após ser fuzilado pelos aviões, o tamanho do enquadramento é exatamente igual ao dos homens derrubados no penhasco na Ilha da Caveira. Na morte, Kong é reduzido a humano. 

“A alma primitiva do homem confina com a vida da alma animal, da mesma forma que as grutas dos tempos primitivos foram frequentemente habitadas por animais antes que os homens se apoderassem delas.” 

― Carl Jung


O praticismo da mise-en-scène

“O sentido não está na imagem, ele é a sombra projetada pela montagem, no plano da consciência do espectador”

André Bazin

No começo do filme, há uma cena no barco onde o diretor pede para a atriz encenar medo ao visualizar algo grandioso dirigindo seu olhar para o alto. Essa cena, além de funcionar para prever a aparição do monstro e fomentar suspense, tem também um efeito metalinguístico pois realça a importância do uso da montagem já que, naquele momento sem um plano do monstro, a imagem não transmite nenhum efeito para o espectador. 

A montagem em King Kong (1933), apesar de não ser significativamente alusiva, é o principal elemento condutor do filme, funcionando sob uma ótica específica de transição de escala mesmo quando submetida a efeitos especiais. Tal complexidade técnica ilustra um diálogo entre o micro e macro, o plano e o contraplano que, a partir da justaposição, reafirmam a realidade fantástica e a caracterização cenográfica daquele espaço. 

Logo após o aparecimento de Kong, a maioria do filme segue a mesma formatação: toda grande ação é seguida de um close-up direto ao corpo, buscando uma manifestação, seja no rosto animalesco de Kong ou na sutileza das expressões humanas. A jornada ao desconhecido gera um efeito inesperado: a façanha técnica de sua realização na maneira de montar, trabalhando constantemente com perspectiva, pode até soar mera convenção formal ou apenas lógica laboral, mas a estilização do filme não segue apenas um desejo de reprodução realista, e sim de natureza prática - uma mise-en-scène utilitária.

O filme mescla diferentes técnicas como stop motion (técnica que anima a partir de fotografias sequenciais de um objeto inanimado), matte painting (pintura manual de cenários e locações) e rear projection (performance que interage com um fundo pré-filmado), todas visando uma representação naturalista convincente, entretanto dado o traço artesanal de suas técnicas, somos envolvidos pela expressividade dessa estilização inconsciente. 

Por exemplo, montagem funciona a partir de uma exposição entre o micro (homem) e o macro (natureza), e é igualmente usada usada de artifício para mascarar o corte entre os atores em um set real no primeiro plano e os bonecos de stop motion no cenário pequeno em segundo plano. As várias camadas espaciais criam um falso senso de profundidade dentro do estúdio, só que quando vemos os personagens encarando a ação real frontalmente, de costas para tela, lembramos da posição do espectador, assim emergindo ainda mais nessa pitoresca selva hostil e barroca, tridimensional às nuances de luz, sombra e vegetação da direção de arte. King Kong nada mais é que um esqueleto metálico com moldes de massa ao seu redor, mas quando ele surge entre as árvores, ainda que seja meio tosco, assusta o espectador, seu olhar carrega a dor inerte de uma escultura viva, ele respira, corre, grita, morde e destrói. Os efeitos práticos sempre envelhecem bem, pois mesmo quando constatamos o erro e enxergamos mais a técnica do que o resultado em si, ainda vemos um registro de tato das mãos humanas no processo, e não a frieza numérica de recursos digitais e moldes 3D.

A consciência temporal da nossa visão 

Para o espectador moderno que está (mal) acostumado com a facilidade dos filmes atuais que contam com um desenvolvimento dramático contínuo e uma gama de efeitos imagéticos muito superior ao dos anos 30, King Kong (1933) pode parecer desconfortável e, em alguns momentos, ultrapassado na sua forma fílmica (efeitos práticos e uma decupagem pouco inventiva) e forma narrativa (maneira de caracterizar os indígenas e a figura clássica da donzela em perigo). Mas se essa consciência de pertencimento a um passado distante castiga o filme pelas mãos da obsolescência, ela também é responsável por libertar nossa visão da perspectiva contemporânea, como se, de maneira complacente, entendêssemos as limitações técnicas daquele tipo de história que sobrevive em um recorte temporal específico, passando a aceitar a ilusão proporcionada rigorosamente. 

E este rigor impressiona pela sua brutalidade e capacidade de caracterização dentro do universo, contando de maneira artesanal com um leque de instrumentos primitivos que acabam por trazer um aspecto bruto a raiva combativa do homem contra o monstro e dos monstros entre si, da qual sentimos visualmente e é assinalada por uma intensidade de violência que experimenta o limite do espectador até para a nossa visão atual. 

Como citado anteriormente, o filme traça diegeticamente analogias através da escala, conectando o monstruoso, o épico e o bárbaro ao impotente, o trágico e ao singelo. O filme brinca com a idéia de escala através da imagem, como nós humanidade somos minúsculos quando comparados à Kong, que é pequeno ao lado do Empire State Building, e o edifício perde-se na paisagem da selva de pedras ou de plantas, tropical ou industrial, e nada é equiparado ao tamanho do céu cinza da qual os aviões militares sobrevoam, que por sua vez faz esquecer todo esse microscópico mundo quando comparado ao tamanho do universo, mas o universo, contrariando a rima e a tese científica, é pequeno, pois se não fosse as improbabilidades não seriam coincidências, e para a visão galáctica, o gigantesco símio descontrolado sobre Nova Iorque no final do filme, lembra muito aquele pequeno macaquinho acorrentado no barco no começo da história. A única constante é a mão humana, ela que trancafia, invade, aprisiona, provoca, atira, mata, filma, edita, aplaude.

“E agora, senhoras e senhores, antes de contar mais alguma coisa, vou mostrar-lhes a melhor coisa que seus olhos já viram. Ele era um rei e um deus no mundo que conhecia, mas agora chega à civilização apenas como um cativo - um espetáculo para satisfazer a sua curiosidade. Senhoras e senhores, vejam Kong, a Oitava Maravilha do Mundo.”

8.5

Anterior
Anterior

Crítica | Assassinos da Lua das Flores

Próximo
Próximo

Crítica | Resistência