Crítica | Resistência
Será que os androides sonham com a revolução armada? e um salvador elétrico?
O diretor Gareth Edwards subverte a visão clássica da distopia Sci-fi estabelecendo um mundo onde a IA é mais sensível que a própria humanidade
O novo filme de ficção científica de Gareth Edwards parte de uma premissa replicada no imaginário hollywoodiano desde que o homem passou a sentir medo do seu próprio micro-ondas: em uma sociedade distópica futurista, a humanidade entra em guerra contra robôs de inteligência artificial, e a perpetuação desse conflito consome não só o mundo a nossa volta, como também a própria significação do conceito de humanidade.
O diferencial narrativo aqui é a inversão de valores. Não, o inimigo dominante que extermina apaticamente as massas, não é a inteligência binária da Skynet ou músculos sintéticos dos replicantes, e sim o pior agente pré-programado do mundo: o instinto de sobrevivência do homem. Em uma apologia evidente a Guerra do Vietnã e a Guerra do Afeganistão, a polícia local e os guerrilheiros urbanos-robóticos defendem-se das invasões norte-americanas como conseguem, usando de abrigo templos ancestrais e zonas rurais, empunhando apenas releituras kalashnikovianas contra uma arma de destruição em massa, uma potente nave espacial de mísseis teleguiados chamada Nômade.
Outro ponto fora da curva é a caracterização desse universo. Se pegarmos como base o icônico “Blade Runner” de 1982, a temática do filme sobre o quão real a programação robótica pode ser é discutida interna ao núcleo urbano, pois toda caracterização distópica é consequência direta do processo de industrialização da sociedade - logo, do espaço de convivência. O efeito prático na tela é um brutalismo tecnológico, uma metrópole sombria e monumentalmente indiferente, ligeiramente clareada por lapsos artificiais e hologramas projetados, enquanto o espectador é submerso pela quantidade de fumaça fabril, acúmulo de sujeira em peças sobressalentes e estimulantes telas de LED.
O uso de locações reais com a composição VFX harmoniza a vida animal, vegetal e robótica
Já “The Creator”, devido ao fator temporal de uma década onde a tecnologia já é tão difundida que, consensualmente, desperta mais uma entusiástica ideia de cotidiano do que um pesadelo asimoviano, a caracterização não está centrada no pessimismo estagnado do efeito industrial, em algum momento da história homens e máquinas foram capazes de conviverem pacificamente, porém após o bombardeamento de Los Angeles, o conflito em questão é fomentada pelo desejo de vingança patriótica mas também pela necessidade de expansão do capitalismo, despertando um imperialismo interessado unicamente pela não extinção e a sobrevivência da “espécie estadunidense”.
Com exceção de algumas cenas em cidades orientais (que, diga-se de passagem, são muito menos asfixiantes que a descrição anterior), o filme é rodado inteiramente em grandes paisagens naturais e espaços exóticos como praias, florestas, plantações e montanhas. O uso de locações reais integrado com o VFX unifica o mundo sensível e o mundo material através das lentes anamórficas e uma modesta Sony FX3, criando uma composição verossímil e igualmente radiante ao harmonizar a vida animal, vegetal e robótica em um mesmo espaço, uma utopia de equilíbrio entre o passado, presente e o futuro.
Apesar de não desenvolver completamente, o filme busca uma jornada de significação mais profunda da relação entre homem e máquina, não se limitando apenas a imaginar uma semelhança externa como aparência física, processo de aprendizado, consciência criativa e etc, e sim um nível de desenvolvimento incorpóreo: o desejo de prazer, a busca existencial, consolo espiritual e principalmente, desenvolvimento sentimental de um laço afetivo.
A relação paternal de Joshua (Denzel Washington) com Alfie (Madeleine Yuna) desenvolvida ao longo do filme é o melhor exemplo da significação imaterial que o filme busca. A distância entre o amor do criador com sua máquina transcende sentimentalmente, não se limitando a ser uma metáfora de paternidade, e sim um assumindo esse papel de fato como forma de redenção. Outras breves passagens que conseguem traduzir o desenvolvimento incorpóreo é em uma das cenas onde podemos ver os dróides relaxando ao fumar um narguilé ouvindo reggae, ou em outro momento quando o protagonista se aproxima de um centro budista, e o plano revela um robô vestido como um monge hindu. É interessante ver como o futurismo é implementado não apenas nas funções laborais que um robô pode exercer, e sim em toda a questão da identidade e consciência que ele possa ter, tendo uma abordagem mais humanista em comparação com outras mídias do mesmo gênero.
A falta de personificação da temática do filme em personagens-chave faz com que a relação do espectador com a história seja artificial
É uma infelicidade que o filme não consiga desenvolver esta temática de maneira tão interessante, e é ainda mais lamentável quando não tem paciência suficiente para solidificar esse universo extremamente interessante. O filme muitas vezes é, ironicamente, tão artificial que esvazia completamente qualquer sentimento que poderia surgir da beleza fotográfica: a história, da maneira que é contada narrativa e visualmente, não cativa o espectador. Nossos dentes não rangem com a injustiça dos massacres cometido pelos militares norte-americanos, nossos punhos não fecham torcendo involuntariamente pela resistência dos guerrilheiros, nossos olhos não lacrimejam com a vida se esvaindo em uma última respirada, nossos corações não aceleram com os momentos de perigo e tensão.
Pessoalmente, considero que um dos fatores importante do blockbuster high-concept é personificar seus temas opostos e universais em personagens-chave para assim o público poder “se relacionar com eles”, sejam protagonistas ou antagonistas. Um exemplo polêmico: todo espectador humanamente consciente sabe que o nazismo é horrível e deve ser combatido, mas esse antagonismo aberto por si só não é suficiente para surtir efeito em uma narrativa não por culpa do valor moral do espectador, e sim que precisamos sintetizá-los em imagem. É por isso que temos Hans Landa em “Bastardos Inglórios”, Amon Göth em “Lista de Schindler” e Arnold Tonth “Indiana Jones e a Arca Perdida”, apesar de não serem exclusivos para existência daquela mal, ao ter um rosto para resumir o inimigo, é muito mais fácil odiá-lo.
Provavelmente este seja o grande problema narrativo de “The Creator”: não há uma personificação de seu tema “Homem vs Máquina” em personagens importantes além dos dois principais, o filme dá pouco destaque para personagens secundários, tanto os rebeldes robôs de inteligência artificial quanto o alto escalão militar americano, quando não identificamos propriamente o inimigo ele deixa de ser ameaçador e quando não identificamos propriamente os mocinhos, não sentimos nenhuma perda. A falha do filme em estabelecer personagens-chave é o principal motivo de apatia do espectador em se identificar com a história, deixando a trama rasa sentimentalmente fora do núcleo do protagonismo, e de certo ponto até dificultando uma relação emocional com a mensagem política do filme.
O ritmo do filme segue tanto um imediatismo publicitário que a Mise-en-scène parece apenas querer poupar tempo
Contudo, não culpo inteiramente a direção e o roteiro por essa apatia, pois o verdadeiro T-800 do filme é o ritmo de montagem. Em um imediatismo quase televisivo, o filme é picotado de uma maneira que não só atropela os arcos dos personagens, como joga o espectador em situações e sequer dá tempo para ele digerir o que está acontecendo, o uso de flashbacks parece apenas um recurso fetichista, soando pouco esclarecedor e uma tentativa falha de reestabelecer alguma ligação com os personagens. Talvez esse desenvolvimento ultra-acelerado ainda se justificaria pela adrenalina, mas mesmo em momentos mais dramáticos e lentos, o filme carece por essa terrível decisão estética.
Esse feito é capaz de excluir qualquer possível visão contemplativa da fotografia sobre a monumentalidade daquele universo e da qualidade dos efeitos especiais ou de momentos mais singelos e pessoais capturados com destreza, pois em vários momentos isso perde-se em um aspecto corporativo de publicidade automobilística, aquela coisa meio épica, tecnológica e minimalista com uma narração dramática por trás, seguida da logo da empresa exclamando seu nome, tudo com uma resolução rápida e direta. O principal clímax do filme, a ida até a nave Nômade, parece ter sido editado para um trailer de promoção de tão ridiculamente rápido que ele é. Traçando uma analogia alusiva, é como se o encontro final do Coronel Kurtz e Willard em Apocalypse Now não tivesse uma parcela significativa de tempo para ser contada, e tudo fosse acelerado para ser uma cena de 5 minutos com uma montagem temporal alternada.
Sem querer nivelar por baixo, mas se analisarmos a realidade do cenário atual de Hollywood e a quantidade de filmes com orçamentos exorbitantes que entregam uma mediocridade audiovisual ímpar, The Creator distingue-se pela quantidade - e sobretudo qualidade - de elementos originais de caracterização do universo, ainda mais contando com um orçamento baixíssimo. As falhas contundentes não prejudicam a autoria de Gareth Edwards que consegue criar um drama sci-fi extremamente interessante, um filme certamente será recompensado pelo tempo.
“Nós somos iguais, não podemos ir para o céu. Porque você não é bom, e eu não sou uma pessoa”