Cinema Marginal: Cafajestes e Canalhas, Reais e Imaginários 

Bang-Bang (1971), de Andrea Tonacci

“Se o cinema é pintura, teatro, poesia, música ou política, logo tudo é cinema. Se tudo é cinema, logo o cinema marginal é o nada.”


O Início, o fim e o meio

Final dos anos 60 e início dos anos 70; o Brasil e o Mundo viviam o apogeu do dito cinema moderno, onde o velho formalismo das engrenagens fílmicas se fortaleceram o suficiente para tornarem-se poderosos aparatos bélicos, capazes de lançar uma ofensiva blockbuster sobre todas as salas de cinema do globo terrestre. Mas antes de ser esse sistema beligerante que se perpetua até hoje, o maquinário constituía-se principalmente de funções meteorológicas, capaz de prever a posição dos astros recém-descobertos, indicando uma gradual mudança nas correntes de ar, que agora caminham em direção a um novo Velho-Mundo de tendências de reinvenção: No Norte, a American New Wave brilhava de maneira sóbria e consciente, na medida que a Leste, a Nouvelle Vague inspirava um expressionismo poético nas demais nações assim como os pintores impressionistas parisienses fizeram no começo do século.

As antigos divindades são agraciadas com sacrifícios pagãos de carne e sangue pelas mãos dos novos semideuses, agora antropomórficos: Kubrick, Tarkovsky, Antonioni, Fellini e Godard. O próprio cenário nacional também não deixava a desejar, com o surgimento e consolidação do Cinema Novo, capaz de dar ao Sertão Nordestino ares sóbrios e trágicos. 

 Do sopro angelical de anteguarda, um cuspe escapa entre os dentes. Exorcizado da costela do Cinema Novo, surgia uma manifestação putrefata, uma espécie de concorrente, contemporâneo e não simpatizante das demais. Conhecido como Cinema Marginal, Cinema de invenção ou udigrudi, era formado por uma série de filmes de baixo orçamento produzidos na região da Boca do Lixo, polo cinematográfico em São Paulo, filmes que mesclavam a depravação das pornochanchadas com o erotismo das vanguardas europeias, pintando sobre as lentes um Novo Brasil: muito menos intelectual e polido que o Cinema Novo; muito mais escrachado e desobediente.

Narrativas experimentais, elementos radicais e um diálogo com a contracultura eram as principais assinaturas daquilo que, para alguns teóricos, mal conseguiu se erguer como um movimento consistente. Todavia, glorioso ou não, está salvaguardado no âmago intestinal da cultura nacional um pequeno espaço sujo e mal arejado, perto de esgoto e debaixo de um viaduto, onde habita este movimento que viu, ouviu e respondeu para a situação brasileira, mesmo que de maneira incompreensível e não alfabetizada.

“O cinema da Boca do Lixo não é um movimento gregário, razão pelo qual não tolera demagogias e/ou teorizações de porta de boteco. O Lixão é apenas um background, onde se reúnem os jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais. Não começa coisa nenhuma onde terminou o Cinema Novo. É antiideológico, renega as éticas e estéticas até então conhecidas e está explodindo como um fato jamais visto.”

“Erotismo e Curtição” São Paulo Shimbun, Jairo Ferreira, setembro de 1970


Rômulo e Remo no Rio Amazonas

Alimentados pela mesma loba, a relação entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal pode ser expressa de maneira fraternal, ainda que divergente: o primeiro acreditava numa política de edificação da realidade branda e sem escrúpulos, desconstruindo a idealização romantizada sobre o panorama brasileiro como forma de denúncia social, criando películas extremamente cruas mas extrovertidas, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha e “Os Fuzis” de Ruy Guerra. Nas palavras do próprio Glauber, “Nem o latino comunica a sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino”.

Em contrapartida, o enfermo Cinema Marginal revelava um estado crítico e igualmente paradoxal: não se resume a um problema de comunicação e sim de existência; a realidade e a ficção são reflexos espelhados, logo ambas devem ser desconstruídas pela mão do cineasta. Por isso, mais do que uma justificação, a desconstrução presente no Cinema Marginal é uma afirmação da irrealidade brasileira. Irrealidade, pois, ao ser manifestada através de uma anarquia flamejante, da deturpação imagética e da fragmentação narrativa, cria-se um niilismo sepulcral que desenterra o absurdo atemporal da história brasileira, denunciando assim o terceiro-mundismo, enquanto paralelamente, condena qualquer sentido ou valor que poderia ser atribuído para imagem. Em um estado estacionário, a imagem é e não é ao mesmo tempo.

Isto posto, que crime teria antecedido tal punição? Qual seria o motivo e a prova concreta que julga esta condenação, ao ponto de impedir o desenvolvimento natural de um filme? Isto certamente permanecerá irreconhecível para nós espectadores. Podemos supor que foi a paixão artística ou a inquietude intelectual que inspirou certos autores, como também podemos supor que tudo fora pelo bel-prazer cafajeste da subversão. Há um sabor exótico em assassinar certos valores morais infundados e os tiranos por trás destes valores, e não foi por acaso que certos filmes foram censurados e cineastas perseguidos durante a ditadura militar.  Mas, com esse indicativo, não quero afirmar que o foco destes homens era apenas contar uma boa piada suja e entreter o pessoal, até porque se fosse assim, o movimento não teria a força que teve e provavelmente cairia em demagogia. Quero afirmar que, além de virtudes, era preciso ter pecados para estar vivo. Como Nelson Rodrigues uma vez disse, “atrás de todo paladino da moral, vive um canalha”. Se o Cinema Novo é o nosso paladino da moral (peço que exclua o sentido pejorativo da citação e deixa apenas a ideia de um defensor nacional forte), O Cinema Marginal é o nosso canalha escondido. Inconsciente? Certamente que não. Inconsequente? Um pouco talvez. Covarde? Jamais! Canalhas? Mil vezes!

“Pela primeira vez, o cinema nacional se abre para o público, para mostrar o produtor violentando as atrizes, o diretor quebrando o pau com o assistente, o maquiador desmunhecando, o câmera paquerando a continuidade, o diretor de fotografia escondendo a garrafa de cachaça, a equipe assistindo o primeiro copião no laboratório. O cinema é um campo de batalha – o amor, o ódio, a violência, a morte.”

 “Audácia! Fita de cinema”, São Paulo Shimbun, Jairo Ferreira, julho de 1969

Este deleite afrodisíaco de destruir o sistema (logo, a própria ideia de uma identidade brasileira intocável) concebeu uma criança bastarda, fruto de um ménage à trois entre a Dona Amor, o Senhor Violência e o Seu Estado. Diferentes filmes com diferentes narrativas e dando diferentes voltas, entretanto o absurdo da irrealidade brasileira parece sempre retornar a estes três conceitos: em “Matou a Família e Foi Ao Cinema” de Júlio Bressane, o parricídio que antecede a ida ao cinema torna-se um homicídio entre duas amantes, e no intervalo da sessão uma cena de tortura com Antero de Oliveira, que mal sabia se aquilo era realidade ou sua imaginação clamando por punição. Em “O Bandido da Luz Vermelha” do Sganzerla, Paulo Vilaça é perseguido em um ritmo anárquico pela polícia enquanto brutalmente rouba e mata apenas pelo prazer - quiçá até por amor. Em “Jardim da Guerra” de Neville D'Almeida, o amoroso jardim torna-se bélico pela hostilidade do Estado. Edson, iludido pelo amor jovial, cai em uma cilada ao aceitar levar uma maleta estranha para o cais, onde é preso e torturado pela polícia sem sequer saber o motivo. O Amor, A Violência e O Estado, todos são adjetivos dessa revolução permanente, todos personagens latino-americanos no nosso cinema nacional, que quanto mais progride, mais reconhece sua condição retrógrada. 

Jardim de Guerra (1969), de Neville D’Almeida


“O Cinema Marginal é canibal e sua dieta tropical consiste de estrangeirismos.”

O Homo-Lumiére pintando a Caverna de Lascaux

O atraso tecnológico da nossa pátria e falta de valorização artística (escanteada pelos representantes políticos) nos faz soar como verdadeiros primitivos em comparação aos colonizadores europeus e a potência norte-americana, ainda que pioneiros em conhecimento e técnicas. Primitivos não por escolha própria, mas sim pela imposta colonização que tornou nosso território exausto e impotente. Isto se reflete fisicamente no estado de acessibilidade de muitos filmes nacionais: a qualidade ruidosa, a baixa resolução e o áudio estourado. Uma marginalidade literal, que é traficada entre as profundezas piratas da internet que nem se dão ao trabalho de reivindicar os filmes por direito de autor. Pode-se dizer, alegoricamente, que esta arte rupestre audiovisual também retoma a um cinema ancestral do início do século.

"Até o Início do Século XX os filmes eram fragmentos da existência real e imaginada"

- Mark Cousins

Nossa história infelizmente não é contada por uma câmera IMAX 3D, e sim por um cinematógrafo a manivela. O Cinema Marginal, mais do que todos, expressa analogicamente este regresso ao primitivismo, onde a decupagem e a montagem ainda eram meios experimentais e não apenas recursos narrativos, onde os filmes se dividiam entre amontados de fragmentos documentais e um cinema de atrações teatral e infantil, onde a limitação técnica e sonora faziam Murnau ou Griffith abraçarem a poesia lírica. Apesar de não carregar consigo o mesmo grau de fascínio e a excitação inocente que uma vez na história, fora capaz de levantar o público aos gritos com “A Chegada do Trem Na Estação”, o apito do trem e a espontaneidade expressiva ainda iria ecoar nas câmaras escuras e cinemas abandonados da Boca do Lixo. O cinema marginal parece dilatar esta tênue linha divisória entre a existência real e imaginada citada por Cousins, mas mais do que isso, cozinha uma relação genética com toda a história do cinema, apesar de um clímax inconsciente. Como dizia Jairo Ferreira, talento antropofágico, e não colonialista.

O diálogo - ou melhor, a discussão - entre o ficcional e o real é agressivo e inconsistente, ora em dissonância, ora em sincronia, obra da pura aleatoriedade – ou para os mais supersticiosos, destino. O imaginário, composto pela construção mental da imagem; a mitologia, a ilusão; a invenção fabulosa alimentada por algo que já foi visto, ouvido ou pensado. Logo, a edição desgovernada também é alimentada pela montagem soviética, onde São Paulo se torna Moscou ao cantar a sinfonia cosmopolita composta por Dziga Vertov em “Um Homem com Uma Câmera”. Logo, as cenas de ação elaboradas e o apelo ao crime em “Bang Bang” de Andrea Tonacci são alimentados pelo cinema de gênero policial barato do Godard, que consequentemente parece um programa televisivo hollywoodiano ou algum filme noir. Logo, a navalha que corta o globo ocular em “Um Cão Andaluz”, obra surrealista de Buñuel, é também a mesma navalha que corta a jugular em “Matou a Família e Foi Ao Cinema”. Como reitera Sganzerla em “O Bandido da Luz Vermelha”, os letreiros iluminados dizem: “Um Filme de Cinema”. Referências imaginárias que, pouco a pouco, vão sendo integradas ao meio artístico e cultural brasileiro. 

O embate entre a ficção e a realidade é severo com o espectador, a desconstrução é tão estonteante que, muitas vezes, nossa consciência sucumbe ao estresse e as têmporas ardem de tanto duvidar do cosmos. O apelo ao imaginário (filmes B de gênero, quadrinhos e personagens da cultura popular) torna-se tangível, enquanto o apelo ao verossímil (rádio, jornal e televisão) torna-se cartunesco. Uma inversão de valores que não é simétrica, mas sim corrosiva. Música animadas e felizes da cultura brasileira contrastam com cenas de ultraviolência, enquanto as viscerais cena da tortura parecem retratar a realidade de uma maneira muito mais franca do que ela própria se permitiria - escondendo-se covardemente por anos atrás de uma ditadura asquerosa. A encenação performativa rompe a linha do horizonte, em um memorável plano-sequência de “Matou a Família e Foi ao Cinema”, uma panorâmica revela, em um primeiro momento, uma violenta cena de homicídio com corpos ensanguentados espalhados pelo chão e o assassino sentado em uma poltrona, a seguir o movimento mostra os rostos de diversas crianças que espiavam pela janela, olhando e rindo fixamente para a câmera. Ou em “Hitler no 3º Mundo” de José Agripino, através de uma metalinguística forte, o samurai interpretado por Jô Soares coloca uma criança na rua para pedir dinheiro, atendida com esmolas por figurantes reais, pedestres passageiros que encaram e interagem com o limite da tela como se fosse rotina. 

Este niilismo é competitivo e ódio nutrido faz com que a realidade enxergue sua representação apenas como ficcional, e a ficção enxergue a realidade de maneira decadente. Uma corrida espacial rumo a um buraco negro, não há caráter simbólico ou interpretativo, apenas uma imagética estacionária, onde a realidade e a ficção descrevem uma na outra. 

O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla


Não vim aqui para falar de Gramática

“A situação brasileira: eu sei, tu sabes, ele sabe, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem.”

Ao classificar cientificamente um filme como pertencente ao "Cinema Marginal", a pré-visualização provavelmente remeterá a uma abordagem experimental e certas convenções temáticas e estéticas de filmes nacionais feitos nesse período. Contudo, além da lógica e da gramática, essa classificação me diz muito pouco sobre a real natureza da sua carne. Em um comparativo, enquanto o Cinema Novo é uma resposta combativa da película contra a fome, contra a miséria e contra a violência, o Cinema Marginal parece que não entendeu a pergunta. A imagética estacionária do movimento, como dito anteriormente, não expressa uma beleza artística, uma réplica política ou uma narrativa pessoal, tudo são apenas arestas e arquétipos que constroem aquele breve rascunho, um desenho de algo ou alguém. Uma aquarela da situação brasileira: a alienada e hedonista juventude vive de bens mundanos e burgueses, enquanto os outros canalhas e criminosos que restaram fogem desta iminente revolução proletária, tropical ou beatlemaníaca, não importa, tudo se perderá em um ritmo alucinante sem motivo nem destino, pois a única certeza aparente é de que o terceiro mundo irá explodir em algum momento.

Retornando mais uma vez a segura distância da coisificação, podemos dizer que estes filmes retiram da noção brasileira de Marginal - o caos, a promiscuidade, o crime, a corrupção, etc - uma noção de Cinema - o imaginário popular, a cultura nacional, a sétima arte. Mas a maquete não é tridimensional e o desenho não é preciso, não existe distância entre estes dois elementos, ambos tornam-se produtos manufaturados, tal como a ficção responde a realidade. A corrosão que acontece nesse processo é dolorosamente ritualística, pois esta é a fórmula química e a passagem bíblica encontrada pelos autores para extrair uma autenticidade brasileira e soberana assim como extraiam o carmesim do pau-brasil durante a exploração colonial. 

Só que o resultado final também revela que a nossa soberania é catastrófica, ridícula, esdrúxula. A real situação do cinema brasileiro não deve ser enxergada sob olhos homéricos, e sim sob uma maldição quimérica. Todo feito é por si só revolucionário, devemos esquecer o trigo e abraçar o joio que restou: O Cinema Marginal é uma verdadeira sacanagem audiovisual, fermentada pelo sentimento de impotência, por uma paixão carnavalesca, pela preguiça, cólera e desapego com a nação. Mas, o consenso popular indica que há algo extremamente libertador e forte em soltar um palavrão de vez em quando.

“Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. (...) Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro”

“Manifesto”, Rogério Sganzerla, Revista Cavalo Azul, 1968

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