Crítica | Rocco e Seus Irmãos

UM RECORTE DE ÉPICO

Em obra prima, Luchino Visconti explora limites cinematográficos


Conversando com amigos sobre alguns perfis famosos no LetterBoxD (nossa própria Cahiers, mais democrática e, portanto, menos qualificada), encontramos o de um ser que assiste mais de mil filmes por ano, a ponto de conseguir completar listas dos 300 melhores de um determinado ano… isso, lá dos primórdios da sétima arte. Mas para além do experimento extremo, que parece colocar a criatura em uma posição de máquina do tempo sempre que assiste algo recente, seus comentários não parecem oferecer nada se não algumas poucas observações pessoais sobre os filmes que não diferem muito daqueles cinéfilos que chegam aos 100 por ano e conhecem meia dúzia de termos.

Existe uma grande diferença entre assistir um filme, refletir sobre ele e, finalmente, contribuir para sua interminável (embora por vezes estagnada) discussão. A expansão do olhar é algo perceptível conforme se estuda, e ao me dar de frente com este Rocco e Seus Irmãos, o último de uma pequena maratona de filmes italianos entre os anos 40 e 60, sinto como se pudesse ver coisas que antes não poderia.

Luchino Visconti, diretor altamente autoral e do qual vi apenas outro filme (seu desafiador Senso, de 1954), não deixa de usar dos mesmos elementos que tantos outros: suas composições não são necessariamente diferentes do que se fazia na Itália na época, e sua influência nos Scorsese e Coppola da vida é visível - de certo modo, o filme é como se O Poderoso Chefão (1972) e Touro Indomável (1980) dividissem um pai. O que me acomete nessa segunda visita a sua filmografia é uma abordagem diferente de Senso, aquele um filme mais malvado e cuja lógica de encenação e amostragem ainda me é confusa - membro de uma família nobre, Visconti acaba deixando claro na complexidade da forma de Senso que desde muito antes de começar a filmar já tinha uma concepção rebuscada de Cinema.

E embora ainda não tenha decidido não apenas se gosto, mas se entendo aquele filme, este me pegou de primeira. Não por ser mais frontal em suas intenções, ou mais “tradicional” em sua narrativa épica que, por mais episódica e amórfica que seja, já foi feita antes e, principalmente, depois. Mas há em Rocco uma tentativa de conciliação, de mostrar o domínio austero da arte que um homem talentoso, inteligente e meticuloso possui com a natureza neo-realista da história que conta. Rocco e seus irmãos, mas também tantos outros.


VENDO O TODO DO POUCO

O que há de diferente em ver este filme hoje, e vê-lo, digamos, três anos atrás, é que além da semiótica embutida em cada plano, há a simples ideia de se entender que o que se mostra já carrega consigo uma importância indissociável do posicionamento do filme como arte e como manifesto. Quando a neve cai e os membros da família a celebram não como um fenômeno da natureza que beira a magia, mas como oportunidade de trabalho (ou seja, limpar as ruas), literalmente não a vemos cair, mas sim o interior daquele apartamento abarrotado de subsolo enquanto estes se preparam para ir trabalhar de madrugada. Felizes.

Em vários desses momentos, Rocco é um filme simples: por mais que Visconti apresente uma continuidade tridimensional na maneira como filma os diálogos atravessados, trocando de foco e núcleo as vezes dentro de um mesmo plano sem nunca excluir propriamente o que está fora de tela (seja por som, ou por mera presença invisível), as sequências são todas diretas em suas intenções. As próprias lutas de boxe provavelmente necessitaram de uma quantidade considerável de ensaio de seus intérpretes, mas são mostradas em takes longos e sem muitas firulas. A técnica exaurida no planejamento, mas escondida na frontalidade.

Seus maiores momentos, no entanto, são quando Visconti se permite brincar de Mizoguchi: contrapondo personagens a fundos, e se ocupando, assim como o mestre Japonês, do todo.

Um cenário não necessariamente precisa ser tocado para ter um impacto na imagem, mas em Rocco há uma interação que ressalta o peso de cada dimensão. Na sequência onde o irmão violenta a ex-mulher, o filme encontra seu ponto mais trágico justamente ao mostrar os três em profundidades distintas: na mise-en-scène de Visconti, a preterição não significa esquecimento e, assim, Rocco e seus irmãos estão sempre em evidência. Suas histórias não acabam, só terminamos de acompanhá-las.

O épico se dá pela duração, pela extenuação de sensações e sentimentos, pelo número de vidas envolvidas, mas diferente do que faz Hollywood com seus longos filmes, em Visconti vemos um recorte, delimitado e limitado, do que é um manifesto maior. Há, em Visconti, a mesma crítica neo-realista quanto a aristocracia, ao autoritarismo, às políticas que levam e levaram para os escombros que o movimento filma, e esta vem nas escolhas, justamente, do que é e o que não é mostrado.

Por Rocco e seus irmãos, encurralados em sua estreita casa, encurralados na profundidade de campos abertos, ou oprimidos pelo industrialismo alastrante, vemos um pouco do todo da Itália. Já a 15 anos sem guerra, mas da qual a preterição é apenas uma ilusão de ótica.

10

Anterior
Anterior

Os 30 Melhores Filmes de Ação do Século 21 (até agora)

Próximo
Próximo

Crítica | A Batalha de Argel