Crítica | Laura Marling - Song For Our Daughter

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LAURA MARLING DA RAZÃO À PESSOALIDADE DAS LETRAS E AO MINIMALISMO DA MIXAGEM AO NOS TRAZER SEU 7º ÁLBUM.

Provavelmente, o melhor do ano.

Há cerca de 3 semanas, conversando com alguns amigos sobre a diretriz do gênero Pop nos próximos anos, um deles, provavelmente sem saco pra discussão naquele momento, soltou: "simplesmente ando com preguiça de ouvir qualquer coisa feita depois de 1970”. Entusiasta de Paul Simon, tenho acompanhado a sua odisseia pela discografia deste que é um dos maiores cantores e escritores da música de todos os tempos. Foi quando ele resolveu trocar sua foto de perfil em uma rede social, dando lugar a Simon e Carrie Ficher (casados por poucos meses), que resolvi me por a mercê de toda sua paixão e explorei os álbuns solo do artista - obviamente as obras em conjunto com Art Garkfunkel também.

Fui de Paul Simon a Father John Misty, voltando para Leonard Cohen e acabando em Sufjan Stevens. Minha cabeça basicamente adentrou, no último mês, em uma esfera em que a preferência por arranjos mais suaves ao ouvido e a valorização predominante dos ditos cantores/compositores tomou conta de mim. Eis que Laura Marling lança “Song For Our Daughter”, e eu definitivamente estava preparado para me debruçar sobre ele.

Em um breve passeio pela metodologia de criação de seus álbuns, Laura consegue ter uma visão conceitual muito ampla e complacente consigo mesma e com seus ouvintes. Seu quinto disco, “Short Movie”, por exemplo, se trata da perda do desejo de criar música e a necessidade de redescobrir o amor por isso - coisa que certamente a maioria de nós já passou, em qualquer área que seja. Esse processo de redescoberta é o ponto em que Laura domina nossas emoções. Ele, somado a sensação de conforto ligada diretamente à energia indulgente na voz da cantora, nos lembra e reforça o porquê de termos tanto apego a algumas coisas. As dores são fortes, mas as coisas dão certo no final. Ou pelo menos se tornam valorosos aprendizados. Sempre.

Enfim, ao álbum.

Laura Marling não possui uma filha (ainda). É no auge de seu amadurecimento musical e pessoal que ela abraça a figura representativa de uma mãe, porém dentro de uma visão mais abrangente. “Song for our Daughter” é um recado para uma coletividade inteira: as mulheres. É através de conversas entre sua versão mais madura e sua versão mais insegura que Marling consegue achar um meio de se comunicar com todas que sofrem o desgaste de viver em uma sociedade extremamente machista, assim como com sua hipotética futura filha, que ela, hoje, se sente suficientemente responsável para assumir tal dever.

“Alexandra”, “Held Down” e “Strange Girl” começam o álbum de maneira energética. A segunda, escondendo seu verdadeiro eu sob a faceta de uma canção sobre alguma decepção amorosa, quando explorada mais a fundo abraça o conceito metafísico do álbum. Ao passo que transparece dor em sua voz por falta de controle em algum relacionamento, apoiada pelas sentimentais harmonias vocais e por uma enfática guitarra no refrão, Laura desabafa para seu futuro eu: And I just mean to tell you that I don't want to be let down; Get lost in the crowd; Seen or unseen; Say what you mean, como suplicasse para que aprendesse com seus erros e que seu sofrimento não fosse em vão.

Quase como uma resposta imediata, “Strange Girl” - talvez a canção mais vibrante do currículo da cantora - infestada por uma eufórica percussão, diz que, dentro de todas oscilações e inseguranças, de momentos de coragem e de estranhezas, ela se orgulha muito de si mesma. É como se Joni Mitchell e Paul Simon tivessem tido um filho em seus dias mais bem-humorados. As harmonias vocais, que antes perpetuavam um senso de insegurança, agora reforçam a autoafirmação de uma mulher que cresceu em admiração consigo mesma em todas as suas formas. Aquela complacência mencionada no segundo parágrafo explode aqui. É onde ela reconhece seus erros sem algum pesar, como “Kept falling for narcissists who insist you call them 'man'; You work late for a job you hate that's never fit the plan” ao mesmo tempo que suplica “Stay low, keep brave”, excessivamente afirmando que sim, você vai vir a se amar e entender o porquê de as coisas serem como eram.

Literalmente uma conversa transcendental entre várias versões suas.

Seguindo nessa linha, “Only The Strong” é Folk em sua essência e vulnerabilidade. Laura tem gosto por trazer destaque para sua escrita mais do que para qualquer coisa - a mesma disse que o álbum é inspirado também em Paul McCartney. Narrativamente, a letra da faixa funciona como alguma justificativa de alguns atos controversos em sua vida. O que funciona excepcionalmente aqui é a entrada gradativa e delicada de instrumentos se asseverando junto a ideia (crescente durante os 3 minutos de música) de que, na vida, só os fortes sobrevivem - mesmo que ela, anos atrás, não tivesse ideia do significado disso. Começando com um simples dedilhado no violão e o “chute” da bateria marcando o tempo, um piano emocionalmente carregado e harmonias vocais se incorporam a voz de Laura conforme a faixa progride. Um dos grandes méritos, dentro do projeto mais minimalista da cantora, instrumentalmente falando, é saber onde e quando anexar suas lindas harmonias, intensificando toda mensagem principal do conceito criado.

“That song was written thinking about how I would have armed myself, a younger version of myself, against some of the experiences, or the accumulation of experiences that one accrues as a young woman in the world.”

“The [album] title comes from the central song on the album and it’s likely somewhat an homage to Letter to My Daughter, the Maya Angelou book, which is a series of essays to a fictional daughter, or to a kind of a wide, broad idea of a daughter; a younger generation of women.”

Laura Marling, sobre a faixa “Song For Our Daughter” para NPR.

É na metade do LP, na música que carrega o nome do álbum, que ocorre o ápice reflexivo dessa jornada introspectiva de Laura. O pessimismo dos dois primeiros versos mostram o que o mundo pode fazer a uma jovem mulher. É chocante. Momentos como “Lately I've been thinking about our daughter growing old, All of the bullshit that she might be told, There's blood on the floor, Maybe now you'll believe her for sure” onde a clara relação sobre abuso sexual salienta como as palavras de uma mulher pouco valem em situações como essa (como em muitos outros casos). É sobre como jovens mulheres tendem a reagir e não agir, oprimidas por um sistema que as obriga a isso. É apesar de toda pessoalidade do álbum saber torná-lo representativo. Esse é o papel fundamental que Laura alcança através da posição figurativa de mãe que se propôs a assumir. É não tapar os olhos para a maldade natural do mundo para com as mulheres mas ao mesmo tempo buscar algum positivismo dentro de si para servir como uma alegoria encorajadora. Obviamente não sei explicar direito, mas ser mãe me parece isso. Um porto seguro que sinalize para uma direção onde as coisas parecem que vão terminar bem. É do 3º verso até o final da música que os violinos e o som abafado do violão soam esperançosos pela primeira vez na faixa. É quando Laura, em quase tom de promessa, declara com otimismo:

Though they may take you for all you had left,You won’t be forgotten for what you had not done yet; So you wished for a kiss from God, And you mourned in your childish loss, Innocence gone but it’s not forgot
You’ll get your way through it somehow

Como final, se opondo aos padrões temporais (presente e passado) de suas conversas, a Laura de hoje, em seus 30 anos, resolve deixar testemunhada uma música para sua futura e hipotética filha. Há paz em sua voz e no reconhecimento de sua trajetória. “For You” é quase uma canção de ninar, com seus múrmuros e com seu tênue violão lentamente marcando seu ritmo . É onde ela captura um significado novo para o que é o amor, tão forte e verdadeiro que adere um significado religioso, onde ela agradece um Deus que nunca conheceu, amou ou quis por uma filha que ela nunca teve.

Para sua hipotética filha, para todas as mulheres jovens desse mundo e para si mesma.

9.3

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