Crítica | Napoleão (1927)

O DESEJO DE GRANDIOSIDADE

Desapegado da representação realista, o fato torna-se profecia nas mãos de Abel Gance


Ainda na primeira hora do filme, após uma grande cena de abertura que ilustra o talento precoce e a habilidade de liderança do jovem Bonaparte durante uma batalha de bolas-de-neve no pátio da escola, um momento em particular ocorre durante uma aula de geografia onde o pequeno Napoleão fica atônito ao ver seu professor escrever no quadro-negro “Santa Helena”, ilha onde futuramente permaneceria exilado até o fim de sua vida durante 6 longos anos de amargura e derrota. 

Toda sua construção chama a atenção: a falta de reação à provocação dos colegas, sua expressão congelada, o largar dramático da pena, o close-up na escritura no quadro seguido do plano de seu rosto. A imagem que chega ao espectador é a de uma reação de um personagem a um acontecimento que, cronologicamente falando, ainda não ocorreu. Essa “premonição” poderia facilmente ser interpretada como anacronismo, já que para os olhos daquele pequeno garoto, Santa Helena nada mais é que um nome perdido em um mapa e a ilha, naquele momento de sua vida, não representa nada para ele. Entretanto, ao acentuar dramaticamente a cena com esse ar cerimonioso, passamos a prestar mais atenção no destino futuro que no momento do presente, imaginando a tragédia que irá decorrer a aquele jovem de olhar inocente recheado de sonhos e desejo de conquista, pois sabemos que ele falhará em seu objetivo. Para nossa visão consciente do rumo da história, Santa Helena diz tudo, e é esse fatalismo que irá se perpetuar ao longo de todo o filme.

Napoleão, como muitos outros grandes filmes históricos, se destaca pelo seu caráter ideológico e na representação heróica que exerce na imagem do próprio, funcionando em pró de uma celebração patriótica muito semelhante ao que Sergei Eisenstein fazia na União Soviética, integrando a mensagem política junto a sensibilidade artística, como por exemplo, no clássico Encouraçado Potemkin (1925) e a icônica sequência das escadarias, que simultaneamente ilustra o abuso de poder contra o proletariado realçando a experiência através de sua forma. 

Mas o que torna Napoleão realmente um dos maiores filmes biográficos já realizados é a maneira como ele absorve toda essa certeza histórica e previsibilidade narrativa e a entrega em um tom supersticioso e místico: Josefina descobre que se tornará rainha pelas mãos de uma cartomante, Napoleão interage com os fantasmas mortos na assembleia após a Era de Terror, e a águia que o consola do frio durante o castigo em sua juventude estava apenas esperando o momento exato para abrir suas asas no topo da árvore para celebrar a primeira vitória em Toulon. Não somos tratados apenas como espectadores passivos, com um olhar viciado na verossimilhança ao conferir datas e fatos apenas pelo prazer de se sentir alinhado à decadente realidade palpável, e sim nos tornamos um verdadeiro oráculo, prevendo a fatalidade das linhas do destino e sendo envolvidos pelo conhecimento do que segue a cada episódio, quase como uma profecia ancestral.

Abel Gance entrega uma áurea mística e premeditada para Napoleão, ele constrói a imagem em torno do mito filmando sua sombra, em contra-luz, de costas e sua silhueta em contraste. A feição do ator é esguia, seus olhos são donos da expressão de poder assim como um busto de bronze resguarda as conquistas em vida de um homem em uma só pose. Ele o transforma em um herói comum e incompreendido, ridicularizado pela elite econômica e militar (personificados nos valentões da escola e, futuramente, nos generais arcaicos) e enaltecido pelo povo (o cozinheiro da escola e os demais soldados), santo ou demônio? não importa, ambos não compreendiam sua genialidade. 

E o mais fascinante dessa mitificação é que ela não nos distância da figura real, Napoleão não é uma aparição vaga e metafísica, ele ergue-se no meio de grandes fatos e cenários históricos, sutilmente destacado através da iluminação e do trabalho de câmera, e também pelos olhos ensandecidos do espectador que procuram nosso protagonista messiânico a todo momento. 

A montagem como catarse histórica e a unificação de sentimentos através do ritmo

Napoleão, em sua montagem métrica e intelectual, dá vida ao conceito ilustrativo de história: essa sensação efervescente, desgovernada e passional, que habita o alicerce de cada reivindicação, cada discurso proferido, cada levante contra a ordem estabelecida. A história que revive os grandes fantasmas do passado, relembrando as traições, as mentiras e o sangue inocente derramado, e também retomando o paladar vitorioso que deglute a conquista, o grito desafinado dedicado como soneto para o sonho idealizado, o punho erguido de músculos contraídos em direção ao céu, sempre em direção ao céu. Essa sensação cruel que, quase como a maré, puxa o homem sem escolha em direção à revolução, o empurra em direção à mudança, incapaz de se opor à incandescência sem cair no abismo do ostracismo. Não há espaço para a nostalgia enquanto se vive, não há motivo para criar dinamismos ou acelerar os núcleos narrativos, Napoleão, mesmo narrando uma história antepassada, é um filme que se passa sempre no presente. 

Em diversos momentos, o filme entra em uma cerimônia de adrenalina muito particular, conduzida por um ritmo alucinante de sobreposições que durante a montagem, encontram nessa espécie de invólucro substancial, uma abstração que capture a essência de uma só maneira, solidificando na persistência retiniana um só sentimento. Por exemplo, na primeira vez que é cantada "La Marseillaise”, o diretor mescla o êxtase, o fato histórico e a encenação trágica, imagens em diferentes escalas da multidão e de personagens específicos sobrepostas por Marianne junto a sua espada e a bandeira francesa. E o ritmo que estas imagens são recortadas, cada vez mais intenso até mal conseguirmos distinguir uma das outras, unificando as diferentes naturezas e reforçando uma ideia de força coletiva até reverberar de maneira descontrolada os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. 

Outro momento memorável é o desfecho do filme, marcado por uma tentativa sublime de inovação tecnológica: para capturar a invasão das tropas francesas na Itália de uma maneira mais imponente, foi desenvolvido uma técnica de projeção simultânea onde três câmeras sincronizadas capturavam a mesma imagem em ângulos diferentes e, quando unificadas, tinham o efeito de expansão horizontal na imagem. Embora rudimentar, podemos considerar um feito muito próximo do que tornaria a se concretizar como o CinemaScope, ou de forma mais vaga, o formato de “tela de cinema". 

Como tudo até então expresso no filme, esta tentativa de estabelecer um formato monumental não tenciona o simples comodismo da contemplação, há um desejo incontrolável por parte do diretor em explorar um efeito experimental que se esconde nas entrelinhas dos cortes e nas imagens justapostas. 

Por consequência disto, o formato é usado logicamente como expansão do cenário, como na cena onde vemos Napoleão transparente caminhando horizontalmente no campo de batalha como um fantasma. Como também assume um formato tripartido em que coloca em cada coluna, imagens que se relacionam entre si pelo significado e pela proximidade analógica. Como, por exemplo, a imagem do globo terrestre, do rosto de Josephine e do mapa da Itália, respectivamente, o que almejava ter conquistado, o que já conquistou e o que está conquistando neste momento. Futuro, Passado e Presente, e logo após funde as três imagens em uma só, mostrando como a vida de um homem não pode ser resumida e mutilada por núcleos bem definidos e separados, e que todo esse conjunto complexo, turbulento e visceral é o que torna quem ele é. 

E no encerramento do filme, as cores da bandeira francesa colorem as três áreas da imagem. Abel Gance, exatamente como o líder militar francês, tem o desejo de conquistar. A tentativa de reproduzir o que futuramente seria o CinemaScope revela não só um coração musculoso e épico, bem como a aspiração do cineasta de querer ser épico, de capturar uma imagem ainda maior, de ampliar as fronteiras já conquistadas. E quando a realidade impede a vontade do homem, ele a dobra com os punhos, a recorta, a remodela até encontrar uma forma nova do tamanho de seu sonho. 

“Seus olhos de águia inscrevem no céu italiano todos os seus desejos e vitórias”

O real como ponto de equilíbrio entre a fantasia

Os constantes textos escritos a mão, as assinaturas reais e as pontuações no quadrante inferior direito dos intertítulos, indicando precisão histórica (historical), é um esforço hercúleo do autor em criar uma linha condutora, um norte que o impeça de se perder completamente em sua representação. Pois a realidade é que Gance está muito mais empenhado em impor a mística ao fato, em construir seu filme não somente como uma biografia íntegra, mas também como uma epopeia pitoresca, ensandecida como a vontade popular, tudo retratado em pinceladas de um “realismo barroco”, apegado-se a verdades e mentiras hiperbólicas e a teatralidade de ações e eventos tão definidores como a forma megalomaníaca visionada na película. 

Abel Gance está longe de ser limpo: as multidões se acotovelam e se sobrepõem no enquadramento pois não há espaço o suficiente, a câmera a mão visionária se desequilibra e dança desajeitada no campo de batalha ou durante a assembleia, e quando Napoleão cavalga pela Córsega fugindo do exército de habitantes enraivecidos, ele e seu cavalo são e engolidos pela voraz paisagem mediterrânea em um plano muito geral. 

Cinema é a fraude mais bonita do mundo.” Jean-Luc Godard

E para ser sincero, este mundo imperfeito e mentiroso criado há quase um século é mais potente que a maioria das obras modernas. Que vá para o inferno os sensores digitais e o RGB! Me dê os rolos de filme tingidos de ciano, índigo, dourado e carmesim! Ou não tinja nenhum! Só a química marmorizada no preto-e-branco já é o suficiente! Sem medo, assumo que meu desejo é antinatural, quero ver a luz artificial ornamentando o assunto exclusivamente como o sol jamais realizaria. Quero que se torne unicolor, odorífico e amargo a chuva que despenca do céu e o sangue cuspido no solo. Quero respirar a fumaça densa e inexequível que escapa dos canhões e das baionetas, sobretudo adentrar e degustar este mundo desnecessário e pouco lucrativo dos cenários pintados a mão, da maquiagem intensa como as máscaras tribais, da forma que não funciona em detrimento a um conceito, mas é este próprio conceito por mais desconforto que gere. 

Me entregue a este cinema bárbaro, antiquado, arcaico, fúnebre, rodeado de gente morta que mal sabia se comportar na frente da câmera - talvez seja esse nosso maior defeito. Chegamos a um estágio da história que, como o narciso apaixonado, aprendemos a apreciar demasiadamente nosso reflexo na tela, já não conseguimos nos desprender da nossa própria superfície. Precisamos abandonar o ego galante e retomar a feiura do cinema-novidade, aquele mesmo que nos levou à lua apenas com a imaginação e outros ilusionismos baratos. Retomar também o cinema-guerrilheiro-urbano, aquele que transborda de raiva até entupir o fundo da imagem, mandando a merda todos aqueles que participam sem saber que estão em um filme. É preciso desaprender, recalcular a rota e errar o cálculo de propósito, para assim, finalmente, nos perdemos por completo. E aí ir de encontro a algo, algo que perdemos no caminho. 

O passado que vive no futuro e o presente que não sabe aonde está.

A única certeza que tinha ao iniciar esse texto, é que em algum momento acabaria indo de encontro a cinebiografia que foi lançada recentemente. Se me permitem abrir parênteses e fazer um comparativo, vamos lá: O problema de Napoleão (2023) de Ridley Scott é a falta de ambição. Samuel Fuller, quando questionado por Jean Paul-Belmondo sobre o que era o cinema no filme "O Demônio das Onzes Horas (1965)", responde: “Um filme é um campo de batalha, é amor, ódio, ação, violência, morte em uma palavra: emoção”. Essa batalha pela emoção da vida de Napoleão realmente não é um objetivo fácil, o grande Stanley Kubrick faleceu antes de poder chegar no campo de batalha, mas nada desculpa o que Ridley Scott fez neste filme. Quando o conflito se agravou, ele se acomodou em sua trincheira, horrorizado e com medo de morte, e o resultado disso é um filme confuso, genérico e desproporcionalmente e não intencionalmente caricato. Ridley Scott, perdido em suas próprias ideias, corre do campo de batalha como um desertor. 

Enquanto o filme do Gance, mesmo decaindo no meio devido a um melodrama burocrático, mesmo sem contar com metade da facilidade tecnológica dos dias de hoje, avança contra o inimigo liderando a artilharia (imagem), a cavalaria (montagem) e a infantaria (música). Sem medo nenhum, sem pensar duas vezes, sem questionar se iria ser concretizado - inclusive essa mesma incerteza tornaria no futuro motivo de frustração, pois o plano inicial era realizar uma série de 6 filmes que contassem a vida inteira de Napoleão. 

Napoleão de Abel Gance é uma obra que se visualiza no futuro constantemente, cada escolha do diretor parece estar planejada para ser revista e impressionar o público décadas à frente - uma utopia inalcançável, que impressiona mesmo aqueles mais enfadonhos que insistem em transfigurar os formatos de longa duração em “séries”. Após 5 napoleônicas horas deste épico mudo, a sensação que permanece ao superar a odisseia é a melancolia, sabendo que ainda sobrou tanta da vida deste icônico personagem para ser contada. Infelizmente, tudo que nos resta é sonhar em como o diretor narraria outras vitoriosas batalhas, a derrocada em solo russo, o exílio em Elba, a retomada em solo francês, Waterloo e, enfim, Santa Helena, onde tudo terminou - ou começou...

Soldados! Vocês estão nus e mal alimentados. O governo lhe deve muito, mas não pode lhe dar nada. A paciência e a coragem que vocês demonstram em meio a essas rochas são admiráveis, mas não trazem glória para vocês. Quero levá-los às planícies mais férteis do mundo. Províncias ricas e grandes cidades estarão em seu poder. Lá vocês encontrarão honra, glória e riquezas. Soldados da Itália, faltar-vos-á coragem ou constância?

9.8

Anterior
Anterior

Crítica | Vidas Passadas

Próximo
Próximo

Crítica | a fantástica fábrica de chocolate (1971)