Crítica | Identificação de uma Mulher

FORMAS NA BRUMA

Em seu penúltimo filme, Antonioni faz uma viagem elusiva em busca de elucidação


Ruínas, ilhas, fábricas, desertos, parques.

Nos filmes de Michelangelo Antonioni geralmente vemos seus protagonistas pequenos perante o mundo, seja pela impossibilidade de se distanciar da civilização, por mais longe que se vá, ou pelo próprio tamanho das coisas que, mesmo sempre em segundo plano, lançam sombras das quais estes protagonistas não conseguem escapar.

Ele filma pessoas de classe média-alta, ricas o suficiente para que as preocupações do dia a dia desapareçam, e o que surja seja portanto o tédio, o ennui, a melancolia de não conseguir mais acompanhar um mundo em constante transformação. Melodramas modernos, onde as emoções são internalizadas, e sentimos o tempo porque o que vemos, afinal, é o tempo. Se um personagem vai caminhar até certo ponto, vamos ver toda a caminhada, e não necessariamente o motivo desta caminhada.

Estar a deriva é o elemento fundamental dos filmes de Antonioni. Eles são sobre seres que não sabem onde estão indo, que constantemente se contradizem, e são guiados por seus impulsos momentâneos. Não entendemos o que sentem ou porque agem como agem.
— LUC MOULLET

Mas nesse Identificação de Uma Mulher, é como se ele internalizasse toda a opressão da evolução humana, da modernidade, nos espaços fechados. Em praticamente todas as cenas, não, em praticamente todos os planos, os protagonistas interagem com algum elemento cênico, seja de maneira ativa (o cara pegando revistas, a mina procurando o espelho no sexo) ou diegeticamente inconsciente (a maneira como são enquadrados, portas, espelhos, janelas, quadros). Poucos diretores, e talvez nenhum que eu lembre, conseguem fazer isso sem dar na cara que são extremamente metódicos. Lembra sim o Khouri, que tem o Antonioni como uma das grandes influências, em como parece ser um filme não tão rigoroso no movimento (seja de câmera ou de corpos no espaço), mas que tem todos os seus desencadeamentos baseados no constituinte, no conjunto de paredes e adornos que compõem os ambientes fechados. Nesse sentido, é seu filme menos “à deriva”, talvez justamente por sugerir uma espécie de aprisionamento que rege os modos de seus protagonistas, mas que não é capaz de prender seus pensamentos.

Esse aspecto é mais potente na primeira porção do filme, ainda com a primeira mulher com quem o protagonista se relaciona. Após a cena do nevoeiro, o mais forte de sua carreira e também o mais desnorteante - em um filme, até então, tão concreto. Logo os dois desaparecem, e o que reaparece é um filme até um pouco mórbido: se as conversas e as caminhadas na multidão me lembraram Rohmer e o jogo de vermelho e azul no apartamento me lembrou O Desprezo (1963), há uma aura entre o De Palma de Trágica Obsessão (1976) e o Argento de O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) e Tenebrae (1982). Para além da arqueologia, da escavação de referências que, por óbvio, caem em Hitchcock, o filme abandona o rigor rumando em direção ao sol, balançando sobre um pequeno barco.

Talvez as cenas mais diretas de Antonioni no que tange emoção, um piano triste ao fundo, e pessoas se olhando pela janela em um jogo de contraplano e enquadramento. Ele vira um quadro na parede, e ela vira uma mulher vendo um quadro na parede. Ele vira reflexo, e o dispositivo revela um split diopter que separa e não integra. Os rostos desaparecendo no reflexo da cidade (praticamente a única vez que a vemos), a janela que permite ver um pouco melhor as formas no nevoeiro, as fotos que procuram o rosto que já se tornou ideia, inatingível. A evolução natural de Blow Up (1966) depois de toda a destruição que a modernidade causou. Talvez, como sugere Moullet, as cores sejam essenciais pra Antonioni mesmo, porque ver elas e sentir que já estão completamente desgastadas é a forma mais potente de se atingir a crise existencial que, nesse filme, já tem nome e sobrenome.

Antes, ele filmava em busca dessa sensação, em busca de como a matéria que une a sociedade moderna revela também essa coisa abstrata e imaterial que provoca melancolia e solidão. Agora, ele filma em busca de Monica Vitti.

9

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