Crítica | Alphaville

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EM MEIO A QUARENTENA, IMPUS PARA MIM MESMO A META DE ASSISTIR AO MÁXIMO DE FILMES POSSÍVEL, ALGO QUE ESTOU CATALOGANDO PELA PRIMEIRA VEZ.

Mas, confesso, fiquei preguiçoso com a enorme quantidade de canais liberados na TV fechada e me limite as programações - que oferecem, ao menos, dois bons filmes por dia, é verdade. O problema é que não há qualquer sequência ou lógica em assistir a estas obras, então decidi que o melhor era escolher um diretor e assistir uma sequência de seus filmes. O escolhido da vez: Jean Luc Godard e sua contribuição para a Nouvelle Vague.

*Alguns destes filmes são clássicos e já foram analisados extensivamente, então coloco como objetivo pessoal comentar aspectos que continuem relevantes até hoje, 2020.


De certa forma, este sci-fi “escrito” e dirigido por Godard sofre por vir três míseros anos antes da possível maior obra da história do gênero, o indubitavelmente superior “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Filme que não apenas revolucionou o cinema graças a coleção de milagres técnicos presentes em sua composição como abordou os mesmos temas existencialistas que Godard tanto tratou durante sua primeira década como cineasta, mas melhor do que o que vemos em “Alphaville”.

Por isso, fica difícil recomendá-lo quando o público de hoje já assistiu a filmes como o de Kubrick, ou “Alien”, “Solaris”, ambos os “Blade Runner”, ou até mesmo os recentes “A Chegada” e “Ex-Machina”. Filmes que beberam da fonte de “2001” e, de certa forma, da própria liberdade narrativa oferecida pela Nouvelle Vague, para comunicar seus temas de maneira que os tornaram obras definitivas do gênero.

Portanto, dizer que “Alphaville” não envelheceu tecnicamente é o mais puro saudosismo, o que não significa que seus temas e vários de seus elementos não continuem preocupantemente relevantes, mais de cinco décadas após seu lançamento. Esta, sendo sua maior virtude.

Acompanhando mais uma aventura do agente secreto Lemmy Caution - personagem criado por Peter Cheyney que, na pele de Eddie Constantine, participou de diversos outros filmes anteriores a este -, o vemos se infiltrando em Alphaville, uma espécie de comunidade cientifica comandada por Alpha 60, um sistema de computador inteligente que dita as regras do local.

Consideravelmente vago durante toda a projeção sobre qual a natureza do cenário que assistimos - definitivamente futurista, mas com quase nenhum cuidado da produção para parecer como tal, incluindo os mesmos carros utilizados na época e mencionando acontecimentos recentes -, “Alphaville” começa com um plano sequência de vários minutos de cair o queixo, permitido apenas pela química entre Godard e Raoul Cotard, seu diretor de fotografia usual. Ao longo do filme vemos várias tomadas similares, mas nenhuma tão bem executada, sendo este o longa do cineasta que menos me impressionou tecnicamente até então. E não necessariamente por conta das comparações acima, mas pelas comparações com outros de seus trabalhos.

Curiosamente, minha cena favorita é aquela onde Caution divide o quarto com a Natacha de Anna Karina, então esposa do diretor e sua musa absoluta. Na cena os dois… conversam e é particularmente incomodo como, em certo momento, Godard os deixa fora de tela e foca em um aparelho eletrônico entre ambos, reforçando a onipresença do vilão Alpha 60 sem necessitar de sua esquisita narração - que não me agradou, diga-se. Com mais uma performance singular e hipnótica, Karina dá vida a uma mulher subjugada por um sistema (como em quase todos os seus filmes em parceria com o marido) que claramente prioriza os homens, e tentar compreender a manipulação que o mesmo tem em seu comportamento é fascinante. Já Constantine é o legítimo anti-herói da época, carismático por ser completamente insosso, ele interpreta bem o tipo agente-de-sobretudo, mas definitivamente já vi personagens melhores sob as mesmas características.

Quanto ao componente do mistério e da ação, a infusão do Noir se mostra eficaz em partes. O uso de sombras é inquietante, mas a trilha repetitiva soa a anos luz de distância do que Vangelis ou Hans Zimmer produziram para o gênero em anos subsequentes e, dentre as muitas cenas de confronto armado, há ao menos uma quase risível, onde Caution aplica um golpe em um inimigo de forma lenta e mal editada, não passando qualquer realismo. A própria estrutura extravagante não colabora para a tensão que o filme poderia passar. Bem, digo isso com a bagagem de ter assistido a future-noir melhores. Talvez, na época, o efeito fosse melhor.

Ao menos se mostrando rico em ideias e pensamentos, “Alphaville” oferece um material extenso para análises e debates. Destaco a forma como o Alpha 60 proíbe certas palavras e como seus seguidores ficam desnorteados com sua destruição, sugerindo nãos apenas o controle ditatorial que os impedem de conhecer o mundo a sua volta, mas os efeitos físicos, biológicos e mentais que governos similares tem, hoje, em 2020. Em uma cena, Natacha descobre que não nasceu em Alphaville, mas foi condicionada para pensar que sim, tendo as outras “galáxias” (alguém entendeu o que Godard quis dizer com isso?) apenas na imaginação - e se isso não é um paralelo assustador com a Coreia do Norte, o que mais seria?

Inegavelmente fascinante pelas discussões que propõe, “Alphaville” é um dos filmes mais difíceis de Godard para o espectador acostumado com o cinema nas décadas subsequentes ao seu lançamento. Embora sua experiência o assistindo possa ser marcada por dúvida e por alguns momentos - técnicos e narrativos - inexplicáveis para alguém que nasceu no século 21 (ou próximo deste), perceber como a visão de futuro do cineasta se relaciona com o nosso presente é, sim, algo que vai lhe fazer pensar por um bom tempo.

7.5

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