Crítica | Desprezo

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EM MEIO A QUARENTENA, IMPUS PARA MIM MESMO A META DE ASSISTIR AO MÁXIMO DE FILMES POSSÍVEL, ALGO QUE ESTOU CATALOGANDO PELA PRIMEIRA VEZ.

Mas, confesso, fiquei preguiçoso com a enorme quantidade de canais liberados na TV fechada e me limite as programações - que oferecem, ao menos, dois bons filmes por dia, é verdade. O problema é que não há qualquer sequência ou lógica em assistir a estas obras, então decidi que o melhor era escolher um diretor e assistir uma sequência de seus filmes. O escolhido da vez: Jean Luc Godard e sua contribuição para a Nouvelle Vague.

*Alguns destes filmes são clássicos e já foram analisados extensivamente, então coloco como objetivo pessoal comentar aspectos que continuem relevantes até hoje, 2020.


“Desprezo” é um filme desafiador.

Diferentemente de outros de Godard, aqui é como se mergulhássemos em um mar profundo em busca de respostas, apenas para descobrir que o que procurávamos já esperava na praia, a deriva.

Escrito e dirigido por Godard, e baseado em um livro de mesmo nome de Alberto Moravia, “Desprezo”, como seu nome sutilmente sugere, é sobre o sentimento experimentado por um casal em seus últimos momentos. Tomando como pano de fundo uma adaptação da Odisseia de Homer a ser dirigida por Fritz Lang (que aqui interpreta a si mesmo em seu último filme), acompanhamos o frustrado roteirista Paul (Michel Piccoli) enquanto este trata com o produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance) para refazer o roteiro, enquanto a relação de Paul e Camille (Bridgitte Bardot) começa a se deteriorar ao longo dos dois dias que o longa cobre.

Fazendo questão de contar a história visualmente, Godard aplica um uso brilhante das cores em uma de suas primeiras aventuras livre do preto e branco. Vermelho, azul e amarelo compõem o primeiro ato, iluminado pelo sol, onde conhecemos os personagens em uma bela vila italiana. Nele, Camille adota um visual azul que combina com o louro de seu cabelo, e reparem como Paul veste uma gravata da mesma cor, ao passo que o produtor Jeremy Prokosch (Jack Palance) adorna uma vermelha da mesma cor da blusa de sua assistente Francesca (Giorgia Moll), refletindo não a conexão entre ambos, mas quase um sentido de possessão.

Por conta disso, o clima de trabalho-amizade jamais se torna confortável, ainda mais por conta das ações de Paul que, submisso as vontades de Prokosch mesmo que elas envolvam sua mulher, claramente afastam Camille de si. O que, de certa forma, é contrastado pelas magníficas locações. A fotografia de Cotard, seu parceiro usual, extrai o melhor possível tanto das tomadas abertas como dos usuais pan shots que Godard utiliza para seguirmos os personagens: como em seus melhores filmes, aqui tomamos o lugar das câmeras, observando atentamente cada movimento que estes protagonizam.

Mas se este primeiro ato acaba preterindo as histórias e temas intencionados à beleza de seu visual - que mesmo décadas depois continua digno de molduras -, o segundo desponta como o momento mais intenso e fascinante da projeção, e arrisco dizer que a mesma seria consideravelmente melhor caso Godard decidisse nos mostrar apenas a dinâmica do casal, pois fica claro que assistimos, aqui, a dois filmes: um, sobre a alma de um artista incompetente (Paul) e a natureza corruptiva de Hollywood (Prokosch); outro, muito mais instigante, sobre um casal definhando e o papel diminuto da mulher na sociedade em 1960 - este último, algo que o cineasta sabe fazer como poucos.

Neste segundo ato acompanhamos o jogo de gato e rato que Camille e Paul chamam de relação em seu apartamento, e como um se esconde de outro ao passo que portas, paredes e até mesmo uma lâmpada que ascende e apaga continuamente se tornam elementos tão importantes para a narrativa como o próprio roteiro. O calor do amarelo é trocado por um branco neutro, que tem o papel ingrato de separar vermelho e azul que refletem, respectivamente, os princípios de violência e a frieza advinda desta, e o posicionamento de uma certa estátua é ao mesmo tempo perturbador e poético. A manipulação deste espaço figura entre as melhores que já vi, e foi dissecada por esta publicação da Interiors, tornando o desprezo que um sente pelo outro em algo que passamos a sentir em comunhão.

A composição da imagem de Camille, inclusive, a centraliza como protagonista emocional da obra, sendo que a primeira vez que é vista, nua, está banhada de vermelho e claramente apaixonada, e é o seu ponto de vista que somos inclinados a torcer - o tema composto para ela é lindo por ser, ao mesmo tempo, grandioso como explorando a nova vida após o final do relacionamento como enfatizando a dor que este final traz consigo. Já o Paul de Piccoli se torna interessante por sua mediocridade e o fato de ele estar quase conformado da mesma, um retrato inquietante do homem comum - e caso sua imagem seja qualquer coisa próxima do padrão estético masculino da época, apenas aumenta o meu desprezo (piada intencional) pelo então ideal de casal vinte.

Logo, com um miolo que beira a perfeição, é inevitável que quando início e final tentam relacionar a história de Paul e Camille com a da Odisséia a sensação seja de que Godard decidiu juntar ideias distintas. Não necessitamos de metáforas para o fim daquele relacionamento quando o próprio já funciona tão bem e por mais estonteantes que sejam as imagens no terceiro ato - as escadarias utilizadas proporcionam planos de tirar o fôlego e que trazem todo o simbolismo que o cineasta procurava -, ou por mais que suas pequenas sutilezas sugiram simbolismos dignos de análises, a narrativa cai consideravelmente também graças a falta de desenvolvimento dos coadjuvantes. Prokosch é um verdadeiro canastrão, ao passo que Francesca jamais deixa de ser apenas sua assistente, e o fato de Camille deixar o marido por outro homem deplorável pode até servir como um documento da submissão imposta à tantas mulheres a época, mas de forma alguma reflete a mulher determinada que confrontava o marido cenas atrás.

Porém, após ficar dias regurgitando estes elementos que considerei falhos a primeira vista, não sei apontar se são, ou não, propositais para a narrativa. Afinal, Prokosch é um exemplo do comercialismo de Hollywood e talvez seja intencional que ele não seja nada além disso. E, talvez, ao não sentirmos a morte de Camille de forma mais potente, estejamos apenas constatando subconscientemente que ela fez a mesma escolha que desprezou no marido, se vendendo a uma vida vazia.

Magnífico ao olhar e tecnicamente impecável, “Desprezo” possui uma das melhores sequências da carreira de Godard e é um dos trabalhos chave da Nouvelle Vague, mas como um todo falha em fazer algo que o próprio fez muito melhor no passado. É um filme desafiador por conta de sua intensidade, mas também por nos fazer relevar qual de suas facetas pesa mais.

Não posso negar que seu impacto, em mim, foi considerável, mas a sensação que deixou foi amarga na mesma proporção.

8.3

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