Crítica | Psicopata Americano

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Você já se perguntou o quão diferente o mundo era 20 anos atrás?

Possivelmente sim e, ao constatar que 20 anos atrás já estávamos no novo milênio, é algo que mexe com a cabeça de muitos. “Mas foi logo ali”, tentamos discutir em vão, enquanto tentamos avaliar o que mudou em nossas vidas e na sociedade a nossa volta. Ao assistir à “Psicopata Americano”, filme de Mary Harron baseado no livro de mesmo nome de 1991, escrito por Bret Easton Ellis, é difícil imaginar que fora, de fato, lançado naquele longínquo 2000.

Graças à aparência imutável de Christian Bale - quando este não está emagrecendo, engordando ou enfortando para um papel -, a falta de outras estrelas reconhecíveis pelos millenials e o próprio método como a cineasta concebeu a obra, é possível sugerir para um leigo que é um filme perdido dos anos 2010 que está fazendo sucesso na Netflix por qualquer motivo obscuro. Nele, Bale vive Patrick Bateman (Bates, “Psicose”, sim), um executivo que, nas horas vagas, atua como psicopata e assassino em série. Pois é, o oposto do que ele faria anos depois como Bruce Wayne.

Completando 20 anos de existência neste 14 de Abril, decidi revisitar uma obra que é menos atual do que futurista, pois, quando lançada, preveria muito dos acontecimentos que se desenrolariam nas primeiras décadas do século 21.

De cara, é gritante o fato de que Harron jamais conseguiria estabelecer a carreira no cinema, flertando com projetos menores que, em sua esmagadora maioria, falharam tanto critica como comercialmente. Aqui, ela aplica tudo a sua disposição para fazer com que a ironia presente na história salte a tela: os movimentos sutis de câmera são divertidamente alternados com close-ups que enfocam na superficialidade presente na vida de Patrick, como na brilhante cena dos cartões onde ele e seus colegas os mostram com todo o orgulho do mundo, invejando a cor de osso de um, o aspecto dourado deste, a textura singular daquele. É evidente que, para homens de seu calibre - e digo isso com a mesma ironia presente na obra -, tudo que possuem são troféus, que tem em si menos valor pessoal do que de status.

São vidas repletas de luxo, dotadas de uma esterilidade psicótica que toma conta de seus apartamentos, escritórios e roupas, que Harron faz questão de explorar ao mesmo tempo em que traz a tona a superficialidade de suas existências. Também por conta das técnicas abordadas pela diretora, que retratam o filme com o mesmo perfeccionismo presente na rotina de estética de Patrick, sempre quando este se entrega a suas necessidades assassinas o impacto se torna ainda mais grotesco, como quando humilha duas garotas de programa, ou quando mata um mendigo indefeso. Porém, mesmo ali, Harron é capaz de suavizar cenas de mais pura violência, conceitual e visual, com a sensação irônica de que o protagonista é o ser mais miserável da projeção.

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Centralizado e um exemplo perfeito da narrativa onde está inserido, o Patrick Bateman de Bale é um ser ao mesmo tempo repugnante e digno de pena. Em uma cena hilária por ser tão patética, ele se olha no espelho enquanto transa, pois mesmo em um momento que deveria ser íntimo ele só se preocupa em reforçar a própria virilidade. Em outras tantas, ele usa do vocabulário rebuscado que conhece - que é limitado a utilizar a expressão “obra prima indiscutível” - pare recitar curiosidades da música popular com o mesmo pedantismo de algum estudioso de música clássica que julga Ariana Grande uma perda de tempo. Você não necessariamente ri, mas são momentos tão absurdos que se tornam inegavelmente engraçados muito, é claro, por conta da performance na medida certa entre o caricato e o visceral que bale emprega.

Mas o que mais me chama a atenção são os temas feministas e sociais escondidos por debaixo da superfície, que se mostram relevantes até hoje. A verdade é que Patrick é um retrato risível de um tipo de homem, que deveria ter ficado no engomado século 20, e de toda sua raiva por constatar como as minorias estavam, aos poucos, deixando de se calar perante a dominância de sua classe - a qual julga superior (Bolsonaro, alguém?). Por isso Patrick não sabe reagir quando cortejado por outro homem, pois é homem demais para isso. Por isso ele precisa de mulheres já subjugadas pela vida para enaltecer sua existência, pois qualquer mulher independente o assusta. Por isso ele tem de eliminar moradores de rua, pois aquela é uma realidade que não aceita ser real.

Surpreendentemente mais adequado à 2020 do que a um mundo pré 11 de setembro, “Psicopata Americano” é um caso raro de filme que rejuvenesce com o tempo e não apenas por conta do cuidado estético que teve, mas por constatar algo que todos demoraram demais para descobrir. De certa forma, o “Psicopata” do título poderia ser substituído pela palavra “Homem”.

E se você se sente ofendido por isso, apenas reforça essa constatação.

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