Crítica | Sinais

SINAL DOS TEMPOS

Sinais é o primeiro filme onde as obsessões de Shyamalan passam a distanciá-lo do mundo contemporâneo


Hoje mais cedo (minutos atrás) escrevi sobre A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971), filme que vi na TV aberta quando pequeno e que revi com meus irmãos uma dia depois de um temporal na praia nos deixar sem luz por 12 horas. “Sempre quis fazer parte de um apocalipse zumbi”, disse o menor, e os dois adoraram a teoria de que um dos vizinhos tem um alien na casa e precisa alimentá-lo periodicamente (por isso não ficam mais de um dia e nunca abrem as janelas).

Aliando isso ao fato de que tenho casa na praia considerada centro de avistamento de ovnis no Brasil, e de que tenho um longa em produção justamente sobre isso, e uma revisão de Sinais (2002) se fazia necessária.

Vi o filme apenas uma vez, há boas quase duas décadas atrás (estou ominosamente velho) com minha mãe e padrasto em uma sessão na TV fechada, e fiquei completamente cagado. Meus irmãos, infelizmente, tiveram alguns momentos arruinados pelo tiktok, mas sentaram até o fim e gostaram.

Enfim, abaixo, falo de algumas coisas mais importantes sobre o filme, e menos importantes sobre a vida.


SINAIS ABERTOS E MENTES FECHADAS

É risonho que Sinais seja o filme que fez a mídia norte-americana e a “crítica especializada” começar a questionar as habilidades de M. Night Shyamalan. Quisera eu que todo filme duvidoso de um diretor promissor fosse um suspense Bressoniano que fala o Mizoguchi enquanto traça comentários Lynchnianos sobre a importância da TV no imaginário norte-americano. Mas também, boa parte desses párias que fazem a percepção geral das coisas não tem paciência pra assistir Bresson e com muita sorte assistiu um ou dois Ozus, o que dirá Mizoguchi.

Pois nos últimos 20 anos… ou melhor, nos últimos 50, a conversa cinematográfica norte-americana se centralizou em torno de duas coisas: o roteiro e o produto. Ou melhor, o que se entende como roteiro, o que se entende como as batidas que um filme deve seguir, evitando furos e preenchendo as caixinhas que tornam as histórias redondilhas - o desenvolvimento de personagem, a jornada do herói, a conclusão. E também o que é produto, mas se entende como Cinema, filmes que nascem mais para vender boneco e merchandise, e menos para serem expressões de seus artistas. Culpemos George Lucas, os De Volta Pro Futuro, os fatídicos clássicos dos anos 80 e 90. Culpemos o Oscar, Roger Ebert (que Deus o tenha, uma pessoa iluminada e que, para além de seu trabalho como guia de consumo, se preocupou sim em discutir Cinema) e, posteriormente, suas crias: os trágicos canais de YouTube e seus influencers.

Logo, um filme como Sinais não poderia agradar. A história não é, afinal, redondinha, pois, como muitos apontaram, por que os aliens invadiriam um planeta composto de um material que os mata? E os mostrando por reflexos em televisores desligados, câmeras de vídeo caseiras e sob as sombras de um cômodo mal iluminado, pouco se pode fazer de suas figuras até bem conservadoras (que não fogem do que comumente se tornou a percepção do que um alienígena se parece).

E Shyamalan não se preocupa em falar sobre o tamanho do universo de maneira factual, ou de teorizar algo que faria a NASA lançar uma review cinco estrelas, pois Sinais, mesmo que auto-fragilizado por tiques de seu roteirista, conversa pela língua de seu diretor. Que os dois sejam a mesma pessoa torna o filme um microcosmo ainda mais interessante sobre a guinada que tomou o Cinema norte-americano desde meados dos anos 2000.


PROVAÇÃO BRESSONIANA

Pela primeira vez percebo, mas agora faz completo sentido, que o Cinema de Shyamalan parece conversar com o de Robert Bresson. Diretor francês conhecido por dramas existencialistas que coloca seus personagens frente a jornadas impiedosas, Bresson era conhecido por extrair o máximo possível das performances de seus atores não para criar grandes cenas, mas para despir elas de tudo que não é necessário. Os chamava, os atores, de modelos, uma versão ainda mais impessoal da infame frase de Hitchcock - que os chamava de gado.

Talvez seja mais fácil fazer o link pelos neo-noir de Paul Schrader, mas o protagonista interpretado por Mel Gibson parece uma re-edição daquele de Diário de Um Pároco de Aldeia (1951) mas que, após renunciar sua fé, se isola também das manifestações sobrenaturais permitidas apenas por um mundo que tem ela presente.

E o Cinema de Shyamalan, para qualquer que tente entender a sua língua, é e sempre foi sobre a fé, sobre o poder do acreditar - e não, como te diriam as criaturas descritas no tópico acima, sobre reviravoltas mirabolantes - e seus filmes são pensados, decupados e compostos para comunicarem isso com suas imagens. O texto, em Shyamalan, é de suma importância para ele próprio, mas serve como um veículo, como um trem que traz abordo sua gramática, que permite que suas imagens cheguem no lugar certo para funcionarem como um todo.

Nesse sentido, cada vez mais o associo a Kenji Mizoguchi, renomado como um dos três grandes nomes do Cinema Japonês e também meu diretor favorito, pois mesmo que Shyamalan não seja um cineasta que resolva seus filmes na mise-en-scène, seu trato que beira o metalinguístico se encarrega de compreender o espaço como algo integral a cada enquadramento.

Qualquer diretor mais pomposo e vazio não hesitaria em abusar de trucagens para tornar os campos de milharal um show de virtuosismo. Mas Shyamalan, muito criticado justamente por abraçar idiossincrasias e exageros mal vindos pra galera do roteiro, constrói as cenas de maneira claustrofóbica: não vemos muito além do corpo e do rosto desesperado de Gibson, e quando vemos algo, é uma perna por um feixe de luz. Ainda assim, o espaço ao redor é explorado dentro e fora da imagem, a tela centraliza seu elemento central (no caso dessas cenas, Mel Gibson), mas compreende seu elemento principal (a possibilidade de uma criatura não-humana estar a espreita) - algo que volta a acontecer na morte de ambos os cachorros, ocorrendo fora de cena.

Técnica que isola o protagonista ao mesmo tempo que o integra a esse mundo: mesmo em sua resolução de não mais acreditar após a tragédia que mudou sua vida, Graham não consegue escapar dos sinais. Claro que, em Bresson, esses sinais transcendem por meio de uma repetição exaustiva de atos mundanos, enquanto Shyamalan canaliza a influência do francês por meio de outras mais expressivas.

Ainda há, porém, alguns traços mais contidos, como a conversa dos irmãos no sofá, realizada em um esquema de decupagem pouco convencional. Primeiro vemos os dois segurando os pequenos no colo enquanto estes dormem e, depois, um contraplano de ambos por um angulo da nuca, que os mostra olhando cautelosamente um para o outro. E ali ouvimos relatos: um deles bem esquisito, até cômico, e que faz esse canal passar pelos dramas caseiros de Ingmar Bergman. Mas as reações são naturais, receptivas, compreensivas. Por meio de uma conversa conciliadora em um momento de provação - ali, a invasão alienígena já parecia certa -, os irmãos transcendem, mesmo que sem saber e mesmo que muito pouco, os traumas de seu passado.

E nessa jornada de voltar a acreditar no mundo, Shyamalan vai em direção contrária aos seus contemporâneos que, marcados pelos atentados de 11 de Setembro, passaram a desacreditar de qualquer tipo de elevação. Não por desgaste existencial como Bresson, mas por um ceticismo auto-consciente.


ENSAIOS SOBRE A IMAGEM

Se o Cinema de Mizoguchi era para Rivette uma arte da modulação, de filmes que encontram sempre o equilíbrio dentro de si, o Cinema de Shyamalan como um todo me parece um grande escopo modular. Por seus elementos comuns (purificação, traumas, dramas familiares, o sobrenatural), por como falam essa mesma língua (as homenagens a filmes B, os zooms integradores, os travelings sintéticos), por como parecem, juntos, tecer algo que parece ser uma obra expansiva e unificada.

Em Sinais, como em O Sexto Sentido (1999), como em A Visita (2015), como na Trilogia Vidro (2000-19), a imagem tem o poder de materializar a verdade, de revelar seus segredos e, finalmente, de curar. A forma como a família aqui se integra do que ocorre no mundo (e, portanto, dá razão as suspeitas dos arredores do milharal) não difere de como os pais de Wen descobrem e aceitam sobre a natureza sobrenatural do que com eles ocorre em Batem A Porta (2023). O maior plano de Sinais é uma sequência que segue os personagens pela casa até que termina no televisor desligado, refletindo e materializando a última ameaça e provação da família.

E se o vidro acaba não sendo tão importante como em outros de seus filmes, é a água, que distorce a visão do Alien (vemos isso por um plano subjetivo), que carrega essa propriedade cristalina, reflexiva e transformadora.

Mesmo os floreios de Shyamalan surgem como meios para seus temas, uma língua que os comunica a todo o momento, um filme que se resolve em si mesmo.

E, assim como A Besta professa em Fragmentado (2017), apenas aqueles que passaram por algum tipo de trauma são capazes, então, de transcender. Por isso, a narrativa alterna entre o que ocorre com os alienígenas e o acidente que tirou a vida da esposa de Graham e mãe de seus filhos. Por isso, vemos seu filho sobrevivendo por conta de sua condição limitadora (a asma) quase ao mesmo tempo que Graham encontra paz com a memória de sua esposa perdendo a vida. A provação chega ao fim, e o mundo que antes se distorcia com as lentes anamórficas ao redor de seu rosto volta a estar acessível. Em todas as suas tristezas, e em todos os seus milagres.

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