Crítica | Drive My Car

SE ESCONDENDO DO ONTEM

Hamaguchi procura resposta para a incomunicabilidade na arte, mas a encontra no meio do caminho


Por qualquer motivo acabei empurrando assistir Drive My Car por dois anos, hábito que tenho com alguns filmes e que não tem muita explicação.

Lembro de ter inclusive assistido Asako I & II (2018) na MUBI, e de estar animado tanto pra esse como pro outro filme de Hamaguchi em 2021, mas quis o destino que o assistisse apenas agora, em 2023 - inclusive, o último filme que vi no ano.

E talvez tenha sido melhor. 

Em 2021 perdi o Brian, meu cachorro, naquela que foi a semana mais difícil da minha vida, no meio daquele que foi o pior ano da minha vida e de muitas outras pessoas. No início de 2022 perdi minha avó e, por conta da distância e das circunstâncias (no mesmo dia, tive que cuidar dos meus irmãos pequenos para que a família pudesse ir pra Santa Catarina resolver as questões do enterro), nem pude experienciar qualquer tipo de luto.

Eram duas das criaturas mais iluminadas que encontrei na vida: uma que via todo dia, outra que não via desde antes da pandemia. Com o Brian fiquei junto até seu último momento, do qual não consigo escrever mais do que isso. A última vez que vi minha avó foi antes de viajar para fora do país, e ela, batuqueira, colocou uma cordinha de amuleto no meu pé, pra dar sorte. Não sou uma pessoa religiosa, mas seja me forçando a acreditar em vida após a morte pra reencontrar meu cachorro, ou me sentindo abençoado com o cordão da minha avó, encontrei algum tipo de conforto.


AGORA E ENTÃO

Drive My Car é um filme, entre outras coisas, sobre o luto. Não aquele luto do vazio impiedoso que se apresenta frente a uma grande mudança na vida, mas um luto de dores que reverberam ao longo dos anos. Eventualmente, a rotina se adequa, a mente se acostuma, os vazios vão sendo preenchidos. Mas a saudade, essa palavra tão brasileira que, nem sabemos, somos privilegiados de conhecer desde pequenos, fica. E as perguntas que não foram respondidas, os desencontros, os planos inacabados, todos voltam como fantasmas que surgem nas mais corriqueiras aparições cotidianas.

Em Vertigo (1958, inspirado em um livro de nome Dentre os Mortos) essa aparição toma forma de uma mulher, em um encontro marcado pela casualidade (o andar na rua), esta causada pela repetição (algo que se faz todo dia): na altura da calçada que deveria ser segura para um personagem com medo de alturas, Scottie encontra Judy, cópia exata de Madeleine, mas é apenas após sua transformação, naquele quarto de hotel banhado pelo verde neon da placa, que podemos vislumbrar o fantasma que o assombra desde a fatídica queda da torre.

Já em Drive My Car não vemos nada tão literal ou expressionista quanto a materialização espectral do filme de Hitchcock. Hamaguchi dilui o impacto visual em uma narrativa marcada por unidades de tempo e espaço, onde os acontecimentos parecem pequenos até que se desenrolam em alguma mudança drástica, mas o filme está repleto de aparições, muitas destas sendo, justamente, duplos.

O mais óbvio deles talvez seja Koji, o jovem ator com quem a esposa de Yusuke tinha um caso e que este contrata como protagonista de sua peça, recriando, de alguma forma, a dinâmica do filme de Hitchcock. A forma como Yusuke encontra os dois na cama, inclusive, remete ao plano de Scottie vendo Madeleine pela primeira vez.

Tanto pelo espelho como pelo texto, Koji entra na narrativa de maneira periférica, e não central: a espiral não gira em torno dele, mas faz com que todos esses elementos eventualmente colidam com Yusuke. No caso dos dois, essa colisão ocorre no embate no banco de trás do carro vermelho, de maneira que revela muito sobre a própria natureza do filme: com um orçamento de pouco mais de um milhão de dólares (muito pouco pra um filme de três horas e várias locações), Hamaguchi filma a conversa com um contraplano de peso muito sentido. Mesmo no escuro, o rosto dos dois atores tem suas linhas bem demarcadas, algo atingido pelo desfoque do fundo que os isola ainda mais na relatividade do tempo, que parece flutuar junto com o carro - que, já ali, parece mostrar uma qualidade sagrada, uma entidade adjacente do filme e que carrega consigo toda uma iconografia transformadora e exploradora.

Para além disso a cena re-introduz, também por meio de um espelho, o outro duplo essencial do filme: pelo retrovisor (não encontrei a imagem exata), a motorista misteriosa descobre que tem a mesma idade da filha morta de Yusuke, em uma coincidência implacável e que cria uma conexão inevitável entre ambos.


AQUI VEM O SOL

Quando Brian morreu, plantei um tomate cereja na terra onde costumava ser sua casinha, que decidimos derrubar e tornar um jardim. Não necessariamente com o objetivo de que crescesse, mais como uma tentativa de seguir me comunicando com ele, que passava as tardes roubando os tomates da minha mãe. Pouco tempo depois uma muda cresceu, e logo um pé, grande e desordenado como ele mesmo era, teve uma breve vida, assim como ele mesmo teve, naquele pedaço de terra.

A isso, e a outros fenômenos, minha namorada me disse repetidamente: quando aprendemos a aceitar, permitimos que aqueles que foram apareçam nas pequenas coisas.

O que torna ainda mais devastador quando percebemos que o duplo que falta, em Drive My Car, é justamente aquele que reverenciaria Vertigo de maneira direta, e endereçaria o evento principal do filme. Entre conversas sozinho, e peças com múltiplas formas de linguagem, Yusuke (e me perdoem por ser uma criança dos anos 2000, mas o nome do protagonista é o mesmo do anime YuYu Hakusho que, literalmente, entra em contato com o mundo dos mortos) se recusa a entrar em contato com o mundo que ficou após a morte da esposa, impossibilitando que encontre - mesmo que nela esbarre - qualquer aparição sua.

O que torna a dinâmica do filme curiosa: entre os ensaios e os passeios de carro, é como se Yusuke tivesse sessões de terapia para tentar encontrar alento, mas este alento se mantém à distância por conta de sua rotina metódica - Hamaguchi torna um filme sobre espectros em um filme sobre corpos, e como esses (ou esse) se relacionam com o espaço. Ele tenta, então, recorrer a outras línguas, a outras formas, a outras ideias, mas segue incapaz de se sensibilizar com o mundo, com seus fenômenos arbitrários que, por meio de associações e valores por nós atribuídos, teriam o poder de… ajudar.

Mas, tal qual Rebecca (1940), ou tal qual a descoberta que Scottie tem ao final de Vertigo, não há maneira de se fabricar o que um dia foi real, e não há duplo que substitua Yusuke no que é para ser a sessão final da grande terapia que é Drive My Car. Por isso, a grande cena do filme ocorre próximo às ruínas de uma casa, talvez este o mote mais visualmente óbvio de toda a projeção. Em um morro, sob a presença opressiva dos escombros, Yusuke e Misaki falam.

Ela revela sua própria assombração no fantasmagórico duplo da mãe, enquanto Yusuke verbaliza o que já era óbvio. Curiosamente, os dois estão separados de maneira assimétrica no quadro, criando uma dissonância perceptível em um filme de cuidado minucioso com suas imagens. Até que, eventualmente, se aproximam do centro para um ato que conecta a espiral de todo o filme, e todo o seu discurso sobre superação, e todo seu comentário sobre linguagem: um abraço que reorganiza o plano, na forma de linguagem mais direta possível, que comunica todas as emoções que permeiam um filme sobre confrontá-las, assimilá-las e, eventualmente, aceitá-las.

O tempo cura, talvez pudesse ser uma das constatações de Drive My Car, um filme que faz suas três horas serem sentidas e que se revela muito mais simples do que sua narrativa idiossincrática sugere. O epílogo, digno de propaganda do zaffari, relembra: vai ficar tudo bem, e o sol vai brilhar, e vamos seguir em frente.

Anterior
Anterior

Crítica | Sinais

Próximo
Próximo

Crítica | Segredos de um escândalo