Crítica | Retrato de Uma Jovem Em Chamas

uma das grandes belezas da arte está em sua subjetividade.

Por mais que tendências, convenções e ideias tenham um papel crucial na concepção e análise de obras das mais variadas áreas, é indiscutível que o significado de todo filme, musica, livro ou pintura se torna único para quem os aprecia, assim como suas respostas emocionais - ou até mesmo físicas - que, por mais similares que sejam, jamais irão refletir exatamente a mesma coisa. Por isso, quando um artista consegue tocar uma grande quantidade de pessoas com seu trabalho é sempre algo especial.

Para os que assistiram à “O Retrato de Uma Jovem em Chamas”, obra prima de Céline Sciamma e um dos melhores filmes - se não o melhor - de 2019, o parágrafo acima resume bem uma das muitas interpretações possíveis da história de amor vivida por Noémie Merlant, como a pintora Marianne, e Adèle Haenel, como sua musa Héloïse - que, prometida em casamento à um homem que não conhece, nem mesmo sabe que está sendo pintada. Para os que não assistiram, recomendo que o façam o quanto antes, pois por mais intimista e pessoal que seja, é algo que deve ser conferido na maior tela possível.

Filmado em 8k para preservar e ressaltar ao máximo suas cores, é como se cada plano fosse minuciosamente pensado para revelar algo sobre o estado emocional de suas personagens e é curioso que, mesmo com um filtro que deixa suas muitas cores lavadas, o longa nunca deixa de soar vivo e estonteante visualmente. O design de produção se mostra fundamental, sendo que as locações internas soam espaçosas mas pouco atraentes, ao passo que a praia que as rodeia pode até ser filmada de forma mais fechada do que o usual, mas figura como o espaço perfeito para que suas personagens possam se sentir livres, mesmo que dentro de si mesmas. Já os figurinos, por mais que utilizem uma simbologia lógica, revelam tanto ou mais sobre aquelas jovens do que o próprio roteiro: se Marianne usa vermelho, Héloïse a contrapõe com o azul e o verde, que pode servir como a mistura da cor prévia com a de seus cabelos dourados.

Mas a maior virtude da produção se encontra naquilo que a diferencia de tantos outros romances envolvendo jovens mulheres: “Retrato de Uma Jovem em Chamas” foi escrito e dirigido por Céline Sciamma, uma mulher. E se você acha que tal informação não é necessária, ou melhor, fundamental para que o longa funcione do jeito que funciona, é porque - possivelmente - faz parte do movimento social, chamado de machismo, que subjuga o sexo feminino desde que aprendemos a diferenciar os dois sexos. Mas divago:

Obras como “Azul é a Cor Mais Quente” e “Carol”, ambas dirigidas por homens, fazem um excelente trabalho de investigar os obstáculos enfrentados por suas personagens femininas, mas ao comparar ambas com este filme de Sciamma é visível como o entendimento emocional - e social - da diretora acerca dos temas que aborda (ela estava em um relacionamento com Haenel, inclusive, até o início das filmagens) contribui para que não apenas conheçamos as personagens melhor do que aquelas interpretadas por Blanchett, Mara, Seydoux e Adele, mas possamos sofrer ainda mais por seus destinos, e nos fascinar ainda mais com suas jornadas. Sem a necessidade de mostrar qualquer relação sexual em tela (algo que ambos os filmes acima fazem), é como se fossemos intrusos em um nível mais profundo, pois se todo o longa é centralizado na visão de Marianne - perceba como a única camera tremida em toda projeção se dá quando a mesma chega a ilha em um barco instável e como, frequentemente, enxergamos o mundo sob sua perspectiva com o uso da camera subjetiva -, sua principal missão é, simplesmente, pintar a verdade de Héloïse e, para isso, precisa conhecê-la da forma mais intima possível.

Aí, entra a habilidade de Sciamma como roteirista, pois a simples premissa que força Marianne a avaliar com atenção quase obsessiva cada movimento, feição e expressão de Héloïse, serve para que também nos hipnotizemos com sua figura que, por mais que jamais deixe de ser feminina, oferece um quê de virilidade - seu porte avantajado, suas axilas por depilar e suas sobrancelhas grossas são propositalmente exploradas -, a forma como a diretora re-evoca isso ao final, para entregar uma dolorida mensagem sobre saudade e memória, não apenas beira o genial, mas o é. O que antes era sua obrigação como profissional contratada, se tornou o motivo de o rosto da amada jamais ser esquecido, ou melhor, de o rosto da amada ser transformado em um ícone fadado a perfeição na mente de Marianne. O fato de Haenel ser também a musa da diretora faz com que o filme não atravesse apenas a temporalidade de sua história, mas a barreira meta-física entre ficção e realidade.

Se relacionando a esta interpretação, somos convidados a fazer um paralelo sobre a arte e como ela é, frequentemente, a melhor forma de nos lembrarmos de emoções e pessoas que jamais sentiremos, ou veremos, novamente. Nuance que Sciamma utiliza, por sua vez, para ligar com o papel opressor que a sociedade exerce sobre suas artistas femininas que, proibidas de pintar homens ao final do século 18 e incapazes de serem indicadas à premiações por não terem um pênis no lugar de uma vagina no primeiro quinto do século 21, raramente podem contar suas próprias verdades. Com isso me pergunto, quantas histórias e personagens fascinantes não perdemos ao longo dos anos apenas por serem mulheres?

Capaz ainda de adicionar comentários mais do que contemporâneos sobre o aborto na Sophie de Luàna Bajrami - cujo plano onde é acalentada por um bebê é tão violento como proeminente -, Sciamma dá às suas personagens principais arcos que, por mais que jamais se completem, exemplificam o quão substancial e, sim, incompleta foi a vida de cada uma delas justamente por não terem uma a outra. E o roteiro é auxiliado pelas performances de suas duas estrelas: Merlant exibe uma força e resiliência possível apenas para uma artista disposta a desafiar as barreiras que a limitam, enquanto Haenel, por baixo de toda a carapaça que constrói, surge como uma menina doce e apaixonada, que espera com ansiedade as possibilidades que a paixão lhe proporciona e é inquietante como, mesmo com toda a ardente - atenção para o plano da fogueira - química entre as duas, fica claro que jamais encontram a paz, pois conhecem o mundo onde vivem.

De volta à frase que abriu este texto, é revelador e arrebatador a forma como Sciamma finaliza seu filme. Marianne, ao ver uma nova pintura da amada - ao lado da criança que possivelmente deu a luz - percebe um detalhe que apenas ela será capaz de compreender: a página do livro onde havia deixado um desenho seu. Se tal retrato e tais pessoas fossem reais, as interpretações acerca da página do livro seriam extensas e, na maioria esmagadora das vezes, relacionadas ao conteúdo literário ali presente. Porém, tais interpretações jamais seriam verdadeiras, pois as únicas pessoas que conhecem a verdade a levariam ao túmulo antes de compartilhar o pequeno pedaço de suas vidas onde puderam ser genuinamente felizes. Nesse sentido, a cineasta nos comunica que não há como realmente compreendermos o que determinada artista, seja ela quem seja, buscava no momento de sua criação, por mais que todo o processo de descoberta seja justamente o que torna tal obra tão marcante - mesmo que este processo esteja sempre fadado ao fracasso.

Porém o longa continua para mais uma cena, onde somos lembrados que tudo que assistimos fora apenas uma memória, possivelmente alterada pela saudade e pela dor presentes em Marianne, onde ela diz que viu a amada mais uma vez - justificando também as aparições dela com o vestido branco, quase como um fantasma. Ali, do outro lado de uma plateia lotada, assistimos os últimos minutos fixados no rosto de Héloïse, enquanto reage a uma orquestra que toca a mesma música que Marianne a havia apresentado. Se ela se lembrou imediatamente apenas com as poucas notas que conhecia, nunca saberemos, mas apenas vê-la desabrochar em suas emoções é o suficiente para nos derrubar.

“O Retrato de Uma Jovem Em Chamas” é, literalmente, uma obra de arte.

10

Anterior
Anterior

Os 100 Melhores Filmes da Década | 2010-2019

Próximo
Próximo

Crítica | Cats