Crítica | Fuga de Nova York

O Último dos Moicanos em Hollywood

Contra toda autoridade, Carpenter constrói um universo distópico através de uma perspectiva Punk


O virtuosismo técnico de John Carpenter estende-se em diversos predicados: a sua criatividade singular em contar histórias, o seu talento musical para traduzir a tensão atmosférica e a habilidade manual de mesclar diferentes gêneros cinematográficos em um só filme são pequenos exemplos daquilo que o torna um dos grandes diretores modernos norte-americanos. Contudo, dentro de muitas outras qualidades, a sutileza certamente não é uma de suas virtudes.

Sua personalidade afrontosa é incapaz de ser comedida quando aborda qualquer temática visualmente, e arrisco dizer que isto é certamente uma abertura para qualquer analfabeto cinematográfico por aí acusar o diretor de ser expositivo como forma de ataque. Mas, o que é ser expositivo para Carpenter, se não a origem de seu virtuosismo? Carpenter é a personificação do punk rock no Cinema: Ele não tenta mascarar seu ataque subversivo com um puritanismo intelectual, amedrontado em soar óbvio ou não ser simpático ao público, ele não maquia sua crítica com metáforas complexas para expressar seu descontamento e pessimismo com o estado e a índole humana, ele simplesmente eleva aquela temática ao extremo sem estufa-lá de panfletagem, visando unicamente provocar uma reação muito mais pessoal e bruta que uma reflexão, algo como um soco no boca que convida o público para um confronto.

“Sempre tem alguma interpretação que não faço ideia do que estão falando, mas fico de boca fechada. Se as pessoas colocam interpretações em meus filmes, isso me faz parecer mais inteligente do que realmente sou, que é o que eu quero” - John Carpenter para Variety (janeiro de 2023)

Todas as entrevistas de John Carpenter sempre tem um certo tom cômico e provocativo, pintando uma imagem muito diferente daquela visão egocêntrica do diretor renomado que se comunica por meio de termos técnicos e vagos sobre sua arte. Carpenter diz que prefere assistir basquete e jogar videogames, que não se importa com sequências de seus filmes desde que seja bem pago e, quando é questionado sobre suas decisões, apenas solta um claro: "não sei, apenas parecia divertido". O status cult adquirido com o passar do tempo parecem não condizer com essa veia underground do diretor, que continuamente repudia uma certa pretensão artística da indústria: ele não se intitula como diretor intelectual, contudo isso não implica que seus filmes sejam obras superficiais.

"A representatividade de um ato vai muito além do que aquele ato por si só oferece" - Marcel Martin

A ressignificação do conteúdo de seus filmes, que como dito anteriormente não são propriamente intelectuais, acontecem mediamente a reflexão de um elemento tanto metalinguístico quanto visual ao entrar em conflito com o olhar do espectador. Logo, seu cinema pode ser definido muito mais como reativo que analítico - ao retornar a analogia ao punk, vamos conferir que todo pensamento projetado através da música, seja visual ou simbólico, é uma resposta para aquela obra, não um valor inserido dentro da sua complexidade. Pois, mais expressivo que a mensagem de anarquia e antiautoritarismo, é a forma raivosa e explosiva que ela é exposta, transcendendo qualquer noção internamente técnica ou externamente estética. Logo, reafirmo que Carpenter é a personificação do Punk Rock no Cinema: De tal maneira que o filme Freaks de Tod Browning inspirou os Ramones para a criação da música Pinhead, não seria impossível imaginar em universo paralelo, uma melodia em homenagem a Carpenter batizada de Cassette Tape, Snake Plissken ou simplesmente Escape From New York.

O aspecto reativo definidor de todo filme é a contextualização do espaço dentro da narrativa. Conferimos a deterioração do Sonho Americano sintetizada espacialmente pela representatividade da cidade, Nova Iorque, cidade simbolo da liberdade e do estilo de vida dos Estados Unidos, transformada em uma ilha penitenciária tomada pela sujeira, vandalismo e seres desprezíveis (ou pelo menos aqueles que o estado considera desprezíveis, mas isto fica mais evidente no segundo filme, Escape from L.A). O ceticismo de Carpenter ao símbolo estrutural estadunidense ganha força principalmente por sua caracterização cenográfica e atmosférica, adicionando ao cenário ora colorido e cheio de vida no passado, um ar apocalíptico e sombrio. O World Trade Center torna-se completamente vandalizado por pichações e escombros, as ruas são tomadas por uma penumbra azul-esverdeada, cheia de dejetos incendiados e carros enferrujados. Homens animalescos parecem retornar a natureza primitiva ao entrar pelas janelas, sair de bueiros e do assoalho como baratas atômicas em busca de comida. Carpenter realmente se esforça para construir uma aura propensa ao gênero terror, inclusive em diversos momentos usa disso unido a tensão da cena para criar situações que equivalem a tal, principalmente nas primeiras cenas nos espaços interiores e subterrâneos, onde a escuridão homogênea delineai contornos de maneira misteriosa e corrompida, assustando o espectador com aquele breve vislumbre do inferno.

Caso o filme tivesse escolhido limitar-se por esse tratamento realista descrito a cima, certamente poderia acabar se rendendo ao genérico, mas Carpenter constrói seu filme não baseado na crítica inserida no estrutura interna, mas sim no efeito que ela causará focandose muito mais na subversão ao ridículo do que na veracidade daquele universo: Escape From New York é um filme pitoresco e pornográfico, e toda e qualquer tentativa de soar heroico e patriótico ao espectador é dilacerado em paródia por esse visual apocalíptico da Mise-enscène. Um filme em que a decupagem milimétrica estabelece apenas o essencial lógico, a estilização dos figurinos é completamente cafona e a encenação dos personagens beira o caricato apenas soará grotesco em sua completude para os olhos do espectador.

O mais interessante é que, mesmo sendo assumidamente grotesco, o filme ainda consegue soar verossímil e masculinizante, principalmente pela figura de Snake Plissken, personagem interpretado brilhantemente por Kurt Russel. A centralização da história em um personagem masculino viril e bruto não é nova em Hollywood, mas foi certamente renovada após a criação desse personagem: um ex-combatente niilista enviado em uma missão impossível após ser chantageado pela promessa de liberdade. Sua natureza icônica eleva o filme a outro patamar, talvez se o papel fosse entregue ao Van Damme ou a Liam Nelson provavelmente cairia em esquecimento, mas Kurt Russel consegue trazer o equilíbrio necessário para o personagem entre a idealização masculina do soldado e o cartunesco de sua personalidade. Essa escolha artística se dá por um simples fator definidor: a necessidade de entretenimento. E aqui, a noção entretenimento não está apenas relacionada a um aspecto comercial, mas sim com a capacidade do espectador de assimilação e por consequência de uma elevação dramática e da semântica do filme e toda essa aura hercúlea que o rodeia.

"Ser entretido é imergir na cerimônia da história para um fim intelectual e emocionalmente dramático" - Robert Mckee

Carpenter, acima de tudo, compreende o caráter fantástico do cinema, por isso mesmo condenando este universo deteriorado, ele ainda retira uma noção de espetáculo visualmente. Ironicamente, isto revela também como a noção da cultura de massa, tão intrínseco na cultura capitalista norte-americana, é capaz de retirar de uma situação completamente apocalíptica e horrenda, um senso cultural de ordem, hierarquia, bem de consumo e até diversão. O poço de petróleo sendo perfurado na biblioteca municipal, o espetáculo decadente em um teatro na Brodway e até a luta que Snake trava no ringue de boxe com um taco de beisebol, esportes famosos nos Estados Unidos, são imagens que demonstram essa ironia pulsante.

O ápice da sátira de John Carpenter é o ato final do filme, onde o desfecho épico é tratado visualmente como antítese de heroico, o diretor saliente sobretudo o sentimento de injustiça: todos os aliados de Snake sendo brutalmente mortos e deixados para trás, todo esse sacrifício em prol da vida do presidente, que está mais preocupado com seu discurso na televisão enquanto alveja o duque com uma metralhadora, uma barbárie típica estadunidense.

No final da missão, Snake percebe que o governo que rege seu país não é tão diferente daquela teocracia anárquica imposta na ilha. Escape From New York é uma distopia vestida de realidade, é o punk rock vestido de cinema, tanto na sua forma explícita visualmente quanto em sua mensagem artística de rebeldia contra o sistema. Só de relembrar que a última cena do filme é o presidente, completamente ridicularizado ao vivo ao colocar uma música qualquer tocar durante conferência mundial da paz, e Snake se afasta despedaçando a fita real com seu cigarro na boca, sou incapaz de imaginar um final tão badasss quanto esse. John Carpenter, como um o bom punk, sabe que não basta apenas transmitir sua mensagem: é necessário cuspir na cara e mostrar o dedo do meio no final.

“I don't give a fuck about your war... or your president.”

8.5

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