Crítica | Carisma
A MORTE NO PLANO
Filme de Kiyoshi Kurosawa assume estética mórbida para tratar da natureza
De certa forma Kiyoshi Kurosawa e David Lynch fazem filmes sobre coisas semelhantes. Distorções da realidade, manchas Hitchcockianas sob uma ótica de horror noventista e pós-moderno, sem nunca deixar de aludir aos aspectos clássicos do Cinema que os formou.
Mas se em Lynch essa distorção altera a forma das imagens, encontrando algo que beira o fantástico nas fabulações cotidianas e que vai desde um quarto vermelho a criaturas inumanas, Kurosawa já é um cineasta que filma o mundo como ele é, encontrando o fantástico por meio de re-significações - essas presentes, claro, no texto, mas principalmente no uso da mise-en-scène, que com ele se torna um médium para essas manifestações sobrenaturais.
Se algo negativo, talvez seus filmes dos anos 90 sejam um prenúncio da dronização da ficção cientifica, do esquisito inerente e nao aparente que influenciou Hans Zimmer e culminou em Villeneuve, com vários primos menores no caminho. Mas a questão é que, em Kurosawa, sobra ideia, sobra um cerne do qual seus filmes operam, e a pompa é quase que inteiramente ausente: não há qualquer tentativa de soar sério e, portanto, melhor, mas sim uma sinceridade por vezes cômica em como seus protagonistas reagem ao anormal (aqui, simbolizado pela trilha tribal que surge nos momentos mais inoportunos).
Em Carisma, ele não precisa de nada mais que duas árvores isoladas em meio a uma floresta desgastada para criar uma mitologia, essa testemunhada pela energia mórbida de Koji Yakusho, o ator que parece ter nascido para interpretar o mundo decadente e podre que Kurosawa enxerga.
Precursor também do imagismo possibilitador de um Hong Sang-soo, onde a qualidade da imagem não é se não uma distração, Kurosawa entendeu o digital como poucos, tanto que mesmo já no granulado do filme brincava com a difusão, com a alta profundidade de campo que deixa as cores pasteurizadas, com uma sensação de pintura anti-dimensional onde tudo parece parte de uma mesma superfície. Essa, marrom, cinza, sem cor, sem vida.
Influenciado por Mizoguchi, Kurosawa é sim um cineasta do todo, que constrói mise-en-scènes a serem usadas em sua totalidade, mas a ele interessa mais uma lateralidade pessimista, onde os personagens parecem tão presos em suas próprias misérias que não conseguem nem mais interagir com o mundo a sua volta. Em vários momentos, aqui, vemos mais de uma camada de profundidade na tela, mas essas parecem nunca convergir, como se seus atores estivessem presos em suas respectivas linhas.
Dai a sensação é de um filme morto, estagnado, apenas esperando seu fim, o que me parece encontrar eco quando nos aproximamos da árvore e a câmera vai pra um estabilizador na mão, em mais um prenúncio do digital. Ela reage aos protagonistas conforme esses analisam a árvore com sua pseudo-ciência, sendo ali o único ambiente do filme onde as coisas parecem ser livres, tridimensionais. Tudo gira em torno da árvore, e ela mata seus arredores.
E como bom Hitchcockiano, Kurosawa faz um Vertigo com as irmãs e depois outro ao achar uma segunda árvore, mas se há em Hitchcock o melodrama, o romantismo, em Carisma tudo é morte - no que me parece ser o primeiro de uma trilogia espiritual com Seance (2000) e Pulse (2001). Se aqui quem provoca a morte é a natureza, resultando no fim da civilização, nos próximos são o sobrenatural que destroem a família e a internet que se encarrega de acabar com o mundo. Por isso, o plano que inicia e termina Pulse é, talvez, o maior da década: olhando sem esperanças, para um passado sombrio e um futuro inexistente.