Beyond | Nascido para Matar

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Se tem um diretor que me cativa a buscar alguma resposta ou sentido na arte e no cinema, é Stanley Kubrick. Seus filmes podem vir em vários gêneros e formas, mas em um filme dele sempre se fazem presentes discussões e reflexões profundas. Apesar dos diversos recursos narrativos exercidos pelo diretor sempre permeiam debates do mundo e da vida, seus personagens e suas histórias são teses que pulsam pela tela em harmonia com a linguagem audiovisual resultando em comentários e construções cinematográficas sobre a sociedade. É o caso na história de Alex em “Laranja Mecânica”, do Coronel Dax em “Glória Feita de Sangue” e de Jack em “O Iluminado”, exemplos dentre outros filmes em que Kubrick escolhe o espectador para acompanhar a degeneração da moral e do Estado. Por esses e outros motivos que tentarei percorrer a seguir, “Nascido para Matar” é um dos filmes que mais me chama atenção da sua filmografia. Seu lançamento em 1987 ocorre em meio a uma onda de filmes sobre a Guerra do Vietnã que abordam temas semelhantes como os horrores da guerra e a desracionalização do soldado no campo de batalha. “Nascido para Matar” retoma e avança em algumas discussões ao lançar uma tese sobre desconstituição do indivíduo humano enquanto se transforma em soldado. Questionamentos que dialogam com pares do gênero e da filmografia do diretor, inspirações sobre a natureza, individualidade, poder e autoridade, invocando “um comentário sobre a dualidade do ser”, segundo o protagonista Joker. Ao longo do filme essas ideias são construídas nos personagens criando uma sistematização teórica entre dois momentos diferentes do filme que convergem para a questão central: a desumanização na guerra.

A narrativa é dividida em duas partes: o treinamento e a batalha. A primeira parte, mais lembrada na cabeça de quem assistiu ao filme, serve para propor a tese. Nosso protagonista fica em segundo plano enquanto assistimos ao Sargento Hartman formar uma turma de Fuzileiros Navais para a guerra. Em uma das primeiras falas do Sargento, o roteiro nos expõe a um anúncio temático. Ele fala que a partir daquele momento nenhum dos recrutas seria tratado como humano, suas identidades seriam destruídas e depois reconstruídas, moldadas para a guerra. Assim podem se criar duas personalidades, em cada um dos soldados, que assim como o filme, serão divididos em duas partes. Durante o treinamento, Hartmann faz a transição do que eram os recrutas individualmente para o que eles vão passar a ser. Seus seres são retirados do lugar que estão e passam a integrar sua Corporação, o exército. Essa transformação passa por conseguirem alcançar virtudes morais ideológicas impostas pelo Estado: a glória, a honra, a defesa da liberdade, a destruição do comunismo. Esse processo ocorre para o batalhão durante a primeira parte, o filme todo é a jornada de James Davis, o Joker atravessando essa transformação. Antes de nos mostrar o arco de Joker, os “dois lados” da sua personalidade temos, na primeira parte, o conflito de um outro recruta, Gomer Pyle, com o Sargento da unidade.  

Hartmann confronta Gomer Pyle, Joker está ao fundo, entre eles. .

Hartmann confronta Gomer Pyle, Joker está ao fundo, entre eles. .

Gomer Pyle, apelido dado por Hartman remete a um personagem da sitcom “The Andy Griffith Show”, popular no anos 1960, Kubrick escolheu para batizar seu personagem, a representação da ingenuidade, da personalidade lenta que no exército faz tudo ao contrário do que seu oficial manda. A referência é nítida em “Nascido para Matar”, mas a escolha por um personagem humorístico traz outro tom. Pyle é uma piada. Chama atenção como o diretor cria elementos de humor na primeira parte da história. Em um filme sobre guerra, que trata da desconstrução psicológica dos seus personagens o humor pode parecer dissonante ao que está na sua volta. Mas como o seu apelido indica, Joker é um piadista que ironiza com o mundo, a guerra, a religião e declara que sua motivação para se alistar é que ele nasceu para matar, na verdade seu humor é uma maneira do seu subconsciente de se proteger. O cômico em Pyle e Joker são suas individualidades que de certa forma resistem ao sistema. Joker tenta superar a sua própria contradição. Por mais que a guerra não faça sentido para ele, também sente a vontade de ir para o combate. Dentro dele há uma vontade individual (paz) e uma coletiva (guerra) que disputam o tempo todo e encontrarão no desfecho do filme um significado. Nos primeiros trinta minutos entretanto, ele precisa superar a sua individualidade, representada pelo seu senso de humor e piadas. A guerra e a vontade de matar encarnam o Sargento Hartmann enquanto a individualidade cômica que pode ser vista como ingenuidade, Gomer Pyle.

E é a personalidade de Joker que o destaca frente ao seu grupo e o tornam além de o líder do esquadrão, o responsável por fazer Gomer Pyle se ajustar. Nessa parte do filme, o conflito interno de Joker invade cada cena. Quase todos exercícios que realizam envolvem dualidades, a todo momento treinam trocar os seus fuzis de ombro, trabalhando repetitivamente: “ombro esquerdo, ombro direito...”. Joker ensina Gomer Pyle a amarrar os sapatos dizendo: “o esquerdo sobre o direito, o direito sobre o esquerdo e o esquerdo sobre o direito”. A frustração ao não conseguir fazer seu colega acompanhar e melhorar no treinamento é a própria dificuldade que ele tem de lidar consigo mesmo. E quando todos recrutas agridem Pyle durante a noite, Joker é o que mais hesita, o que mais bate e ainda ao voltar para sua cama tapa seus ouvidos para não ouvir os gritos do colega, comportamentos antagônicos. Ainda assim, ele se torna um dos melhores recrutas aos olhos de Hartmann e lidera os exercícios propostos. Seu inconsciente por mais que conflituoso é capaz de se fazer presente no coletivo do treinamento: o lado da guerra está ganhando. O soldado Pyle, depois de ser maltratado por seus colegas acaba “melhorando”, ou se homogeneizando, sua ingenuidade é corrompida e portanto ele pode ter a glória concedida pelo Estado. Dois momentos demonstram como a desumanização de Pyle age para o seu desfecho. 

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Gomer Pyle depois de ser o soldado com maior dificuldade de se enquadrar no grupo de soldados é violentamente forçado a se ajustar. A partir daquele momento ele se torna habilidoso e competente, merecendo elogios do seu Sargento. Kubrick coloca duas cenas em sequência: na primeira os soldados estão treinando gritos de guerra, enquanto respondem ao sargento: “Sangue! Sangue! Sangue! Morte! Morte! Morte!” a câmera encontra Pyle se aproximando do seu rosto, deixando o corpo de soldados e escolhendo ele, parado enquanto ouvimos o grito “morte!”. Na sequência, o Sargento Hartmann faz um discurso para sua tropa falando sobre dois casos de franco-atiradores nos Estados Unidos que foram capazes de manejar suas armas de grande distância e acertar seus alvos (um deles assassino do JF Kennedy). A conclusão do sargento é que os dois foram treinados pelos Fuzileiros Navais e mostraram ao mundo do que um Marine motivado é capaz com seu rifle, novamente a câmera encontra Pyle e fecha nele, entre seus colegas, prenunciando o desfecho da primeira parte do filme. Pyle era o recruta que tinha a individualidade mais destacada entre o grupo, a primeira pergunta que o Sargento faz a ele é se acha alguma graça nele. A dificuldade dele de se integrar é cômica, assim como Joker. O término do seu arco é a transformação total dele em uma máquina de guerra, ao matar seu Sargento e depois se matar com um tiro na cabeça mostra que finalmente se entregou completamente à corporação. 

Passamos para a segunda parte do filme: a guerra. Nesse momento o roteiro apresenta novos elementos para análise, Joker foi transferido para Da Nang para trabalhar como jornalista do exército. O fato de ele e seus colegas estarem em território “pacificado” é o principal dilema que enfrentam pessoalmente. Em comparação com a tropa em combate que vamos conhecer depois, os jornalistas se comportam de uma maneira diferente, com desdém pela guerra. Há alguns comentários bastante políticos sobre a representação feita pela mídia e da opinião sobre ela que as próprias tropas tinham. Um dos colegas de Joker se irrita ao ter sua câmera fotográfica furtada nas ruas, ele fica incrédulo pois não consegue entender porque mesmo que eles estejam ali para ajudar se sentem maltratados pela população local. Essa é uma construção comum ao colonialismo, que justifica uma forte ação militar em território estrangeiro sob algum tipo de chamado superior que algumas nações recebem para tal. A cena dos dois soldados em Da Nang remete a uma fala do próprio Joker quando perguntado porque se alistou: “eu queria conhecer pessoas estimulantes de uma cultura antiga e diferente… e matar elas”. Essa ideia se contrapõe à racionalização imperialista feita por seu colega, pois ela reconhece tanto as individualidades dos inimigos de guerra, como uma própria outra cultura, não inferior, mas comparada. 

Joker avança no campo de batalha com o bottom Hippie e seu capacete com a frase “Nascido para Matar”

Joker avança no campo de batalha com o bottom Hippie e seu capacete com a frase “Nascido para Matar”

Talvez para o que restou de personalidade egoísta de Joker, o trabalho no jornal poderia ser um lugar para se manter existindo. E vemos ele em uma reunião de pauta militar exercendo a maneira como se apresenta desde a primeira cena. Como jornalista, ele já aparece com seu bottom Hippie no uniforme. Mas claro que, a ideologia de uma guerra não é construída apenas no campo de batalha, os militares que trabalham no jornal do exército também são parte do sistema-guerra e precisam contribuir para a sua continuidade. O chefe do jornal, explica que só são permitidas dois tipos de matérias: ou as que exaltam vitórias militares dos Norte-americanos ou as que mostram alguma demonstração de boa vontade feita pelo exército dos Estados Unidos que tenha resultado em deserção de tropas inimigas. Uma maneira racional e intelectual de desumanizar o inimigo e só reconhecer ele a partir da “conversão” dele. Essa fala vai ao encontro da construção de uma justificativa colonialista para a guerra. Entre os que serviam como correspondentes de guerra, Joker é tratado como um militar que “só lutou a guerra fácil” pela falta de experiência dele em combate, refletida na maneira irônica que ele trata o mundo na sua volta. Pelos próprios colegas ele não é reconhecido enquanto não abrir totalmente da sua maneira de agir, aliás: é alegado como inconcebível uma pessoa que já esteve em um campo de batalha guardar resquícios de individualidade.

Após o bombardeio da base do jornal, Joker vai ao campo de batalha como correspondente e posteriormente combatente. Na transição, ele e seu colega fotógrafo viajam de helicóptero com um militar que se vangloria das suas mortes confirmadas enquanto atira em camponeses com uma metralhadora. Há entre Joker e ele oposição sobre a guerra, que cabe na pergunta “você mata até mulheres e crianças?”, que recebe uma resposta positiva e premonitória. A partir de então temos sua contradição exposta na tela: o bottom hippie no peito e o capacete escrito “nascido para matar” na cabeça. O que pode ser ironia e soberba do personagem, inclusive quando ele justifica para um oficial sua estética, representa na verdade sua própria incapacidade de se enquadrar na guerra, sua contradição que mesmo afirmando que nasceu para matar e que gostaria de ser o primeiro garoto do seu bairro a ter uma morte confirmada não entende bem o motivo de estar ali e para que serve. Em um belo plano sequência uma câmera filma os soldados se protegendo de um bombardeio: na última de várias filas estão Joker e seus novos companheiros de combate. Logo que a câmera passa por ele, faz uma piada: “esse é você John Wayne? Esse sou eu?”. Qual o papel do cinema na idealização bélica norte americana? Como os filmes de Faroeste contribuíram para a moralização da guerra? E se a virtude de um soldado passa pela desumanização e integração coletiva como distinguir um militar de outro? 

As tropas andam na cidade destruída cantanto a música do Mickey.

As tropas andam na cidade destruída cantanto a música do Mickey.

O momento final chega. O esquadrão em que Joker e seu amigo Cowboy, reencontrados depois do treinamento, vão ao campo de batalha. Conhecemos outro soldado o “Animal Mãe”, esse é descrito como desagradável, mas sob fogo é um dos melhores seres humanos na terra. É a máquina de guerra perfeita. Imediatamente Joker e ele entram em conflito. Em uma das cenas as tropas avançam sob ruínas em chamas cantando “quem é o líder do clube que foi para mim e você? Mickey Mouse”, uma alusão à dominação exercida pelos Estados Unidos no sobre o mundo. Nessa cena Joker nos conta que finalmente está pronto para a batalha. E é isso que ele tem. Nas cenas seguintes seu pelotão entra em conflitos e tem baixas. Até que se veem encurralados por um franco atirador. Um a um seus companheiros tentam atravessar o campo de batalha e são abatidos. Cabe a Joker tomar uma decisão. Os sobreviventes, incluindo ele, Animal Mother e Cowboy, flanqueiam a direção de onde vem os tiros. Cowboy é atingido, mas o grupo consegue suprimir o fogo do adversário. Joker tem seu desafio final: seu amigo é assassinado e cabe a ele encontrar o sniper e terminar o trabalho. Ao entrar no prédio de onde vieram os tiros, descobrimos que o atirador era uma menina, que agoniza no chão. Joker precisa escolher matar uma criança indefesa ou não. E mata.

“Nascido para Matar” discorre sobre a guerra e a desumanização do ser humano. Joker surge no primeiro ato como um soldado em dilema que resiste contra a submissão ao sistema. Na última cena ele finalmente se submete, abre mão da sua forte personalidade e cumpre seu objetivo de ter uma morte confirmada. Na sua jornada ele vai perdendo suas ironias, sua maneira de ainda humanizar o adversário e seus questionamentos, só assim que um soldado pode finalmente colher as virtudes da glória, quando se torna uma arma do estado. Kubrick relaciona isso com as agressões do imperialismo norte-americano, relacionando a maneira como o Estado força o soldado a entrar no sistema com a maneira que os EUA invadem países para estabelecer o que eles entendem por melhor. Por esses motivos esse é um dos mais poderosos dramas de guerra e das mais fortes críticas à invasão do Vietnã produzidas. Porque sua temática é particular e universal uma vez que todos somos submetidos ao Estado e suas maneiras de coerção para nos deixar mais alinhados com a norma. Kubrick foi capaz em sua obra de criticar duramente a desmoralização da máquina do poder e suas maneiras de produzir morte pelo mundo inteiro e operou em seu penúltimo filme essa temática com excelência, eternizando seu legado.




























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