Crítica | Psicose
“Acho que não vou dormir hoje”.
Poucas coisas me frustram mais do que saber que jamais verei um filme novamente pela primeira vez. Por mais que os anos, os estudos, a memória e a experiência possam alterar por completo certa obra quando revisitada, a não ser que ela não desperte nada em você vai ser difícil ter o maravilhamento da primeira assistida. Por isso, uma das maiores alegrias que tenho na vida é re-assistir alguns filmes pelos olhos dos meus irmãos mais novos, de (agora) 9 e 11 anos. Se antes tinha os visto se impressionar com a escala de “2001”, dessa vez pude sentir seu medo e apreensão com “Psicose".
São crianças inteligentes, que já viram uma infinidade de filmes “de adulto” e que já reconhecem algumas das batidas de Hollywood, e mesmo não estando acostumados com nada da época de “Psicose”, se divertiram e ficaram tentando adivinhar o que ocorreria, se surpreendendo e ficando com ainda mais dúvidas com a reviravolta - ainda não conseguem, é claro e ainda bem, entender todas as nuances psicológicas e humanas da narrativa, mas logo chegam lá.
“Nem parece que é em preto e branco”.
O que isso quer dizer? Não faço ideia, mas talvez tenham achado a imagem boa para um filme de antes de o pai deles nascer? E realmente, para qualquer pessoa desacostumada com “Cinema”, o estilo de Hitchcock pode parecer datado e até lento, mas quem assiste Shyamalan e Fincher (ainda no topo do iceberg, não chegamos a Petzold ou Kurosawa…), assiste Hitchcock sem qualquer problema - inclusive, assistimos “A Visita” depois e a noite de sono foi devidamente comprometida, e mal posso esperar para apresentá-los à “Seven” e “Clube da Luta”, mas vou esperar.
Pois o que teria de lento em um filme que, literalmente, nunca para? Mesmo sem olhos atentos para todos os detalhes ou condições de entender a investigação de impulsos e natureza proporcionada por Hitchcock, do primeiro momento ao último há algo de instigante acontecendo. O que começa com um relacionamento com problemas financeiros se desenvolve em um desejo inevitável de resolver tudo de forma fácil, que logo se transforma em culpa e, finalmente, auto-realização… apenas para ser tudo jogado pelo ralo. A paranoia de Marion logo se torna a ciência do espectador, vamos de não saber o que irá acontecer a seguir, a únicos confidentes do segredo que resolveria o caso e salvaria outros personagens, mas por mais que conversemos com a tela, eles não nos ouvem.
“Ah, mas eu não entrava ali…”
E Hitchcock faz um filme que segue não apenas acessível, mas convidativo e fácil de se acompanhar. As cenas, além de manifestarem de maneira clara as intenções e emoções de seus personagens, são visualmente simples no que comunicam: um olhar paranóico enquanto dirige, os óculos escuros de um policial, a casa mal assombrada no topo da colina, um diálogo desajeitado que poderia flertar com a comédia romântica não fosse o segredo que é escondido de todos até o clímax. A cena do chuveiro, um dos melhores usos da montagem soviética na história do Cinema, é uma obviedade tão gritante que se torna mais do que a cena em si. Os violinos altos e os cortes desnorteantes, o horror e o voyeur, o humano e sua obscuridade. Agora, somos nós que espiamos - e vocês não sabem da minha felicidade em descobrir que eles não faziam ideia de que a cena existia nem pelas inúmeras referências.
Mesmo as minúcias que enriquecem a narrativa, sutis em sua apresentação, se fazem claras em seus objetivos: as sombras que precedem Marion, as alusões a pássaros, presos em armadilhas ou livres para voar e os próprios bichinhos empalhados, a chuva que antes parecia lavar a alma, agora escorre o sangue. O melhor amigo de um garoto é sua mãe, o impulso de tentar descobrir algo, mesmo que isso provavelmente vá lhe custar a vida. Por mais sofisticado que seja, carregando anos, movimentos e teorias distintas do Cinema e as revolucionando como Hitchcock fez durante aquele período, “Psicose” segue sendo maravilhosamente simples. Aqui, ele praticamente se desfaz do drama (ela foge), do romance (ela morre) e proporciona quase que um mero exercício de suspense, que funciona por si e oferece suas próprias complexidades no caminho.