Crítica | Vidro

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Vidros são estruturas complexas. Embora frágeis, refletem e distorcem o sentido no qual mais confiamos e por vezes nos fazem questionar a essência de coisas que nunca duvidamos.

Dirigido por M. Night Shyamalan. É incrível como essa frase pode conter os mais distintos significados.

Nascido na Índia e crescido nos Estados Unidos, o diretor acumulou durante toda sua carreira filmes icônicos, seja para o bem ou para o mal. Para cada “Sexto Sentido” em sua filmografia, teve um “O dia em que a Terra Parou”. “Sinais” é um excelente terror alienígena, “Depois da Terra” uma das maiores bombas interplanetárias da carreira de Will Smith. “A Visita” um divertido filme de terror que adiciona novas fórmulas ao gênero found footage, “O Último Dominador de Ar” uma das piores atrocidades do século. É uma montanha russa de emoções, o popular 8 ou 80, é, sem melhores palavras para descrever, M. Night Shyamalan.

É indiscutível que a obra mais ambiciosa de sua carreira é a trilogia “East Rail 177”, que conecta os filmes “Corpo Fechado”, “Fragmentado” e, agora, “Vidro”. O primeiro foi a história de origem de David Dunn, o herói interpretado por Bruce Willis, um filme melancólico e paciente, mais gratificante e explorador cada vez que você retorna a ele. O segundo foi a origem do vilão Kevin Wendel Crumb - de acordo com muitos, o primeiro filme dedicado inteiramente a um vilão no gênero -, um tour de force para James McAvoy e um dos suspenses mais inquietantes da década. O fato de 16 anos e uma temática consideravelmente diferente separarem ambas as produções já tornariam a execução de “Vidro” algo difícil, mas nem Shyamalan tinha noção de o quanto este seu universo de super-heróis particular iria crescer.

Assim como a Besta de Kevin Wendel Crumb ou a força de David Dunn, Shyamalan não teria noção do monstro que criara e o resultado não poderia ser outro, uma obra prima repleta de erros e falhas, mas que definitivamente servirá como um marco no gênero.

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É extremamente correto dizer que ele fez o melhor que pôde com o espetacular material que criou ao longo dessas duas décadas. Se tivesse feito melhor, poderíamos estar olhando para um dos, se não o melhor filme de 2019 e afirmo isso mesmo estando em janeiro. Eram três personagens principais complexos e cheios de camadas com não mais que dois filmes contando suas histórias, além de uma intrigante nova integrante para a mistura na Dra. Ellie, uma das atrizes jovens mais cheias de talento e uma história complexa que precisou ser meticulosamente pensada. Equilibrar tudo isso exigiria três horas de duração e um esforço hercúleo. O segundo, Shyamalan teve.

O primeiro ato do filme é intrigante, enervante, instigante. Assim como boa parte de “Fragmentado”, a todo momento você se pergunta o que acontecerá a seguir, o coração se agita e a mente começa a viajar pela memória dos três filmes para tentar encontrar qualquer pista que ajude a desvendar a trama que começa a se formar. Shyamalan tem controle total da história e de seus personagens até ali, ele consegue explicar fatos não mostrados anteriormente com simples movimentos de câmera, o uso de cor é minuciosamente bem dosado e a quantidade de peso nos visuais é essencial para o entendimento completo da história.

Tecnicamente, “Vidro” é um show a parte. O trabalho por trás das câmeras lembra muito mais “Fragmentado” que “Corpo Fechado”, mas traz elementos utilizados nos dois que te farão enxergar cada filme de uma forma diferente a partir de agora. É uma movimentação dinâmica e segue a perspectiva de seus personagens, sempre sugerindo que algum acontecimento que possa mudar totalmente o rumo da história esteja a seguir. A cinematografia coloca enfase aonde quer colocar e aumenta as emoções da história. A trilha sonora ajuda muito seus principais momentos, recorrendo ao trabalho de ambas as instalações anteriores e tem pelo menos dois momentos extremamente inspiradores. E raramente os diálogos não funcionam, há muitos monólogos aqui e a grande maioria funciona muito bem.

O primeiro confronto entre Dunn e Kevin é excelente, trazendo doses inesperadas de ação que funcionam muito bem e uma tensão tanto visual como conceitual, quase tão pesada como em já clássicos do gênero como a trilogia “Batman” de Nolan e a trilogia “Homem-Aranha” de Sam Raimi.

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A mudança de ritmo no segundo ato é notável, com o roteiro se preocupando mais em desenvolver seus personagens do que avançar, propriamente, com a história. A personagem de Sarah Paulson tem um mistério por trás de suas motivações muito bem aplicado, que combinam com o ar de estranheza que a atriz passa tão bem, mas o excesso de enfoques no rosto dela incomoda um pouco e não faz muito sentido em diversos momentos. É aqui, quando todos os personagens tem de ser conectados, que Shyamalan se atrapalha um pouco, sendo necessário mais de uma visita ao filme para poder entendê-lo completamente. A confusão desse ato acaba tirando o excelente balanço do começo, com Dunn sendo deixado de lado muito mais tempo do que deveria e Anya Taylor Joy não tendo quase nada para fazer no filme, o que é um desperdício do talento e dedicação de ambos os atores, que perfeitamente trazem a mesma energia de seus personagens de volta.

Apesar de o interesse pela história não diminuir, esta porção do longa é quase inteiramente carregada pela performance assustadora de James McAvoy, que está ainda melhor que em “Fragmentado”, onde já deveria ter sido indicado ao Oscar. A facilidade com que ele troca de personagens sem a utilização de cortes e a maneira do filme em forçar isso sem ser forçado é um dos momentos mais brilhantes tanto da carreira de Shyamalan como diretor como de McAvoy como ator. Mais que isso, fica claro que ele cria personalidades e maneirismos para cada uma das personalidades, um trabalho seminal e provavelmente mais difícil e complexo que qualquer ator a ser indicado a qualquer coisa nesta temporada de premiações.

O retorno do filho de Dunn e da mãe de Elijah Price com seus atores originais é muito bem vindo e Samuel L. Jackson, que dispensa qualquer tipo de apresentação, consegue passar muito bem toda a deterioração mental e loucura que Elijah passou tantos anos preso. Apesar de seu plano e suas ações serem um pouco difíceis de entender, suas motivações e a confiança que ele tem no que acredita são extremamente plausíveis e ressonam com você após o final, como todo bom vilão deve fazer.

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O motivo de todas as críticas mistas que o filme vem recebendo vem, em sua maior parte, por conta do complicado final. Com reviravoltas atrás de reviravoltas, as três principais diferem muito em seus resultados. Uma delas, conectando Dunn e Kevin, é excelente roteirização. Outra, explicando as motivações da personagem de Sarah Paulson, é bem duvidosa. A última, envolvendo o Mr. Glass, é impactante, mas talvez deixe mais perguntas do que respostas e, aliando ela ao que acontece com os três, há um tom destoante. Porém, algo que não pode ser negado é que “Vidro”, e toda a trilogia em si, tem mais personalidade que quaisquer filmes de super-heróis lançados recentemente. Em seus melhores momentos é um trabalho seminal, afinal, estamos rodeado de heróis com todos os tipos de poderes, mas mesmo assim, ao assistir esse filme, queremos acreditar que estes personagens tem poderes sim, talvez por, pela primeira vez, eles parecerem possíveis no mundo real. Infelizmente não seria a palavra certa, mas é a que melhor encaixa, pois a falta de tempo e algumas decisões duvidosas de Shyamalan impedem esta de ser sua obra prima, mesmo que o filme só vá atingir todo seu potencial quando completamente digerido, e isso vai levar algum tempo.

Similar à “Homem-Aranha: No Aranhaverso”, “Vidro”, de sua forma peculiar, nos mostra que devemos acreditar em nosso potencial. Se não é isso que queremos de um filme de super-herói, eu não sei o que é.

7,5

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