Crítica | Era Uma Vez Em ... Hollywood

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Basta assistir a qualquer filme de Quentin Tarantino para perceber que poucos diretores, na história do cinema, amam tanto esta arte quanto ele.

Sua já lendária carreira, constituinte de apenas oito filmes até então (“Kill Bill” vale como um) foi, definitivamente, marcada por suas características mais conhecidas: a violência, os diálogos triviais e as recorrentes tramas de vingança. Mas, de longe, o que mais pauta seus filmes é seu apreço e quase doentio conhecimento sobre as mais variadas obras, dos mais variados países, dos mais variados diretores. E, se em “Bastardos Inglórios”, o qual ele mesmo admitiu como sendo sua obra prima na época da produção, ele passou perto de utilizar o cinema como principal força propulsora na história que contava, aqui ele se entrega de vez a essa vontade. É por isso que, como fã do diretor e amante do cinema, assistir às muitas referências que povoam este mundo recriado por ele é um deleite para todos os sentidos.

E percebam como a palavra “recriar” toma duplo sentido quando se fala na relação de Tarantino com o cinema. Em “Era Uma Vez… Em Hollywood”, ele recria a Los Angeles do final dos anos 60 com um ar nostálgico e imersivo, mas não deixa de torná-la mais um exemplo da pós-modernidade que ajudou a instalar na cultura Pop desde “Pulp Fiction” e que, por sua vez, recriou o universo do cinema como um todo. Como exemplos disso, estão a hilária citação do diretor italiano Antonio Margheriti (que divide o nome com o Urso Judeu de “Bastardos Inglórios”) como uma “ponta” no Tarantino Cinematic Universe, e uma mais sutil, como um plano tão similar à “Nós”, de Jordan Peele, que é impossível acreditar que não seja uma referência. E o fato de não ser, pois “Nós” foi lançado após o fim das filmagens de “…Hollywood”, torna essa relação simbiótica de Tarantino com o cinema ainda mais aterrorizante.

Por falar em terror, muitos dos rumores acerca do famigerado último filme do diretor - o qual Tarantino sempre disse que seria o décimo, ou seja, o próximo - dizem que ele poderia, de fato, filmar algo deste que é um de seus gêneros favoritos, sendo que guerras, gângsters e faroestes já foram abordados. E é curioso que em duas cenas deste novo trabalho ele dê um gosto do que seria uma obra sua focada inteiramente em aterrorizar seu público, criando, no processo, dois dos momentos mais enervantes de sua filmografia.

Porém, “Era Uma Vez Em… Hollywood” não é um terror, não é um faroeste, não é um gângster, não é um filme de época e, por mais que chegue perto, também não chega a ser uma comédia. É, assim como todos seus outros projetos, um filme de Quentin Tarantino, como apenas o próprio é capaz de fazer.

Não que todos estes gêneros não estejam presentes aqui, pois ao centralizar as ações envolta do ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e de seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt) no fim da era de ouro de Hollywood, ele acaba fazendo um pouco de tudo. Rick é um ator de faroestes (“Django Livre” e “Os Oito Odiados” são referenciados várias vezes no processo), além de também ter feito um filme sobre o nazismo (“Bastardos Inglórios”, nova e claramente), enquanto Cliff é uma versão mais afável, menos psicótica, mas tão perigosa quanto o Sr. Blonde (“Cães de Aluguel”) e constantemente dirige o mesmo Cadillac daquele personagem (propriedade de Michael Madsen, ator que o interpretou e detém o carro na vida real). E se esta sinopse já parece um labirinto para você, então antes de ler a crítica ou assistir à este filme recomendo que assista pelo menos todos os mencionados neste parágrafo.

Essa questão, inclusive, é uma das principais “críticas” a serem feitas não apenas a essa, mas para as últimas obras de Tarantino. De certa forma similar à “Vingadores: Ultimato”, “…Hollywood” requer um conhecimento prévio ainda mais profundo para poder ser aproveitado por completo, pois, diferentemente do evento da Marvel, não apresenta nada próximo de uma estrutura narrativa convencional, nem para os padrões de seu roteirista. Dividido em dois núcleos, apenas um deles propulsiona o filme para frente, e faz isso por meio de extensivas cenas triviais e cotidianas do mundo de Rick como ator e ao mostrar diversos filmes os quais ele fez (e não deixa de ser um presente que Tarantino tenha filmado estas cenas com os aparatos da época), além de se utilizar de extensivas tomadas de Cliff dirigindo por Los Angeles para nos colocar ainda mais naquele mundo de 50 anos atrás e também de flashbacks, dentro de flashbacks, para estabelecer os traços marcantes de sua personalidade.

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E se chamar o filme de “arrastado” ou “entediante” é um desserviço, pois suas quase três horas passam voando, é inevitável comentar como este é, de longe, o trabalho mais paciente e contemplativo de um diretor que, não curiosamente, estaria em seu penúltimo. No final. No CLIFFhanger (inglês para penhasco e expressão cinematográfica utilizada para se falar de um clímax e, é claro, nome do personagem de Pitt) de sua carreira, assim como os dois personagens que apresenta aos espectadores.

Essencial para que este sentimento de nostalgia se instale, o design de produção é vibrante, vivo e fiel àquela época, sendo abrilhantado ainda mais pela exuberante cinematografia de Robert Richardson, talvez a mais bela em um filme de Tarantino que, ao injetar tons alaranjados em praticamente todos os planos externos, brinca com o próprio nome dado àquela Era Dourada de Hollywood, além de retratar uma Los Angeles que parece estar sempre banhada de um sol prestes a se por em um belo entardecer, enaltecendo ainda mais a sensação de algo que estava chegando ao fim. Inteligentemente, Tarantino faz com que o design de produção devolva ainda mais à cinematografia, se utilizando de cenários e figurinos também centrados no laranja, além da própria aparência bronzeada de Brad Pitt e de Margot Robbie.

Sou só eu, ou DiCaprio está idêntico à Jack Nicholson naquele poster?

Sou só eu, ou DiCaprio está idêntico à Jack Nicholson naquele poster?

E agora chegamos ao segundo motivo pelo qual todos estavam tão interessados neste filme, pois não é sempre, se mais alguma vez na história, que veremos Leonardo DiCaprio e Brad Pitt, dois dos melhores e mais cultuados atores dos últimos 30 anos, contracenando juntos. Por mais que seja um pleonasmo destacar como a química da amizade de ambos é real e palpável, é importante comentar sobre como Tarantino consegue, talvez pela primeira vez, imprimir um sentimento de amizade maior do que o dever que une seus protagonistas. Pois se Vincent e Jules trabalhavam juntos e Dr. King libertou Django por seu próprio interesse, o fato de Rick ter de “demitir” Cliff não os impede de curtir mais uma, de muitas outras futuras, noite de bebedeira e diversão. E é incrível como, ao comentarem sobre um episódio de série no qual Rick estrela, ambos conferem tanta naturalidade àqueles personagens que é como se fossem iguais à qualquer duo de amigos no planeta, algo que não julgaríamos possível para dois astros daquele tamanho.

Nada curioso, porém, o fato de Brad Pitt, um dos nomes mais reconhecidos da história de Hollywood, interpretar um dublê, profissional extremamente ofuscado e subestimado pelos fãs. Por isso julgo que seria não apenas ironicamente gratificante, mas mais do que justo que Pitt ganhasse seu primeiro Oscar por este papel, o qual figura facilmente entre seus melhores trabalhos. Cliff é um homem que nunca deixa de sugerir um perigo iminente graças à sua inabalável implacabilidade, mas sua personalidade esquisitamente carinhosa e o fato de Tarantino ter lhe agraciado com algumas das falas mais engraçadas que já escreveu, o tornam um de seus personagens mais amáveis. Já DiCaprio consegue, como sempre, evocar tudo que quer em Rick Dalton, um homem egoísta e cheio de si, mas que, por dentro, tem medo de perder tudo que conquistou e evidencia isso em cenas hilárias onde deixa suas emoções aflorarem (em uma cena genial envolvendo uma garotinha). É genial como ele consegue flutuar entre as atuações boas e ruins de seu personagem, construindo diversas atuações dentro de sua atuação, quase como um palanque para seu enorme talento.

E, para chegarmos ao que considero ser o ponto principal de “…Hollywood”, opto por usar de spoilers para discutir este, e outros elementos, da melhor forma. Então, se não tiver assistido ao filme, pule para o fim da área demarcada.

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Anteriormente comentei sobre duas cenas intensamente enervantes, agora, as destrincho:

Na primeira, Cliff adentra a comunidade da Família Manson e Tarantino consegue criar, com planos sugestivos e uma inquietante falta de trilha sonora, uma sensação de perigo tão eminente que é como se soubéssemos que algo de ruim fosse acontecer. Feita com maestria, pode ser uma pena que termine de forma um tanto anti-climática, com Cliff indo embora antes de ser confrontado por Tex, mas isso aconteceu apenas para que:

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Na segunda, os dois voltassem a se encontrar agora na casa de Rick, com Cliff completamente chapado por um cigarro com ácido que havia comprado justamente de uma hippie. E aí vemos mais traços da genialidade de Tarantino não apenas como diretor, mas como roteirista, pois além de criar tensão, novamente, ao mostrar os três subordinados de Manson invadindo a residência (repare como a única cena do filme passada a noite é justamente no final, conversando novamente com a cinematografia), ele se utiliza de elementos antes triviais para solucioná-la. Por isso, quando Cliff dá o comando para que sua cadela ataque os intrusos, é o ponto de partida perfeito para um dos mais engraçados e gratificantes festins de violência de um diretor que, anteriormente, havia metralhado nazistas e explodido racistas. E aí se torna inútil comentar a cena em si, pois tudo, desde Cliff e seu cachorro arrebentando com o trio, à Rick utilizando seu lança chamas, é quase como um orgasmo gigantesco para qualquer fã de Tarantino.

Além disso, ambas as cenas conversam diretamente com o que o próprio título do longa realmente quer dizer, e aí chego à Sharon Tate de Margot Robbie. Magnética não apenas pela semelhante beleza que ambas as atrizes dividem, mas pelo que sabemos que, em teoria, aconteceria à ela ao final da projeção, se torna impossível tirar os olhos de cada movimento seu. E talvez seja um motivo de frustração de muitos que acreditavam que a personagem teria muito mais a fazer aqui, mas considero genial que Tarantino opte por torná-la um símbolo de pureza e felicidade, mostrando a forma como se entrega às músicas que dança, o modo honesto e carinhoso com que trata todos a sua volta, mostrando sua emoção quase infantil ao assistir, em uma sessão normal, um filme seu ser aplaudido pelos telespectadores. A Sharon Tate de Tarantino é, provavelmente, o único personagem moralmente perfeito que criou em sua carreira, sem maldade, sem sentimentos obscuros, apenas um lindo retrato que homenageia uma jovem que perdera a vida de forma tão trágica.

Por isso, sempre que os membros da Família Manson aparecem e sentimos uma apreensão tão inquietante, mais do que em qualquer outro de seus filmes. Afinal, se pudéssemos impedir que qualquer de seus personagens viesse a morrer, certamente escolheríamos Sharon justamente por se tratar de alguém real (se você escolheria Rick ou Cliff, procure um psicólogo).

E é aí que o título do filme se justifica, pois ao mantê-la viva ao final da projeção, aplicar à cena final uma bela música clássica remetente aos contos de fadas da Disney e colocar o título que normalmente inicia qualquer conto infantil no canto da tela, percebemos que, na fábula de Tarantino, Sharon Tate continua viva, pois aquele é seu mundo ideal, onde não apenas todos vivem em função do cinema, mas onde o mesmo pode salvar vidas de modo que ele, talvez o diretor mais influente dos últimos 30 anos, nunca seria capaz de fazer. Se este não é seu mais belo final, não sei qual seria.

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Embora nada tenha realmente me incomodado, é inegável que certos elementos desagradem até mesmo os fãs do diretor. O uso de voice-overs não é novidade, mas ao utilizá-los para resumir um período de seis meses sua exposição pode parecer excessiva, mesmo que divertida na voz de Kurt Russel. Há também uma outra cena envolvendo uma festa onde um personagem simplesmente explica, para o público, a relação entre Tate, Polanski e seu amigo/ex-namorado. Para os fãs de Bruce Lee, animados com a semelhança de Mike Moh com o astro das artes marciais, pode ser decepcionante ver que ele está em apenas uma cena (e outras mini cenas), onde, ainda por cima, é enfrentado de igual para igual por Cliff - por mais que seja um dos momentos mais engraçados e bem filmados do longa, quase que inteiramente em plano sequência. Além disso, como já comentado antes, o segundo ato tem cenas em demasia relacionadas ao cotidiano da dupla que pode muito bem enfastiar aqueles esperando pela ação. Todos estes são problemas que, pessoalmente, não tive com o filme, mas devem ser reconhecidos.

Assim como a grande maioria dos críticos já vem dizendo desde a exibição do longa em Cannes, “Era Uma Vez Em… Hollywood” é uma carta de amor e uma homenagem de Quentin Tarantino à sua maior paixão, o cinema. E, apesar de não ser seu melhor trabalho e de precisar de mais alguns anos para que todos entendam e absorvam tudo que ele quis passar, me dou o direito de opinar que talvez seja, dentre todos os filmes que fez, o seu favorito.

Por conta de sua qualidade e dos temas que aborda, se esta for, realmente, a penúltima vez que assistimos à um filme de Quentin Tarantino, “Era Uma Vez Em… Hollywood” fica ainda melhor.

9.1

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