Filmes Para Toda Hora | O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Esses dias enviei uma mensagem para minha mãe no início da tarde.
Ela sempre faz isso comigo. Habitualmente, pelas 13 horas, recebo essa mensagem perguntando se almocei, me desejando um ótimo trabalho e dizendo que me ama. A Sra. Sylvia, naquela manhã, ao passar o meu café como faz de costume, colocou uma colher de açúcar na xícara, e eu, há dois anos, passei a odiar café de qualquer jeito que não puro. Ela, então, parecia extremamente chateada com algo tão simples. Um singelo detalhe na minha rotina que poderia ser facilmente consertado e que, de fato, foi mais engraçado do que qualquer coisa em função da minha reação - meu rosto se enxugou a ponto de meus olhos, nariz e boca ficarem no mesmo milímetro quadrado ao sentir aquele gosto que não sentia fazia uma eternidade -.
Minha mãe depois de 54 anos sabe que os pequenos detalhes importam. Nesse dia eu me antecipei a ela. Entre 10 ou 12 linhas, antes das 13 horas, tentei resumir todo o amor que sinto, além das informações minuciosas sobre o meu almoço e a desejando um ótimo trabalho. Fez toda diferença e isso eu pude perceber em seu sorriso ainda perdurável depois de 6 horas. Um agradecimento especial à minha mãe e à Amélie Pouilan por me ensinarem que devemos prestar atenção nos detalhes.
A cena de abertura, deste filme que analisarei hoje, já faz questão de mostrar a importância dessas particularidades. Aliás, Jean-Pierre Jeunet faz um ótimo trabalho em traduzir esses pequenos detalhes em coisas que parecem transcender o sentido da vida por alguns segundos, qualificação que ele possui em seu repertório, amando dar destaque a aleatoriedade e casualidade do nosso mundo. De fato transcendem. Quando isoladas, deixam de ser banais para se tornar algo fascinante, como dois copos dançando por causa do vento, uma mosca batendo as asas tão rápido que sequer conseguimos ver e o próprio processo da gestação.
Essa amostra de coisas que não se conectam, seguidas de um pequeno momento onde Amélie come amoras com os dedos, derruba peças de dominó e acaba um milkshake, dando aquela puxada a mais no canudo do copo quase sem bebida que possui um barulho tão único e memorável, traduz toda inocência que temos ou já tivemos e perdemos, e cria a atmosfera simbolista do “Fabuloso Destino de Amélie Poulain”.
Basicamente, os escritores simbolistas buscavam resgatar o romantismo que foi esquecido em função do realismo e do materialismo científico, afirmando que a arte não poderia ser retratada apenas sob o ponto de vista da realidade tri-dimensional e mundana, afinal, a vida é cheia de nuances em que, inevitavelmente - e muitas vezes automaticamente, pois gosto de pensar que em grande número somos sonhadores - fantasiamos sobre esses pequenos momentos e logo em seguida já temos um mundo completamente novo na nossa cabeça. Cabe só a nós nos esforçar um pouquinho para ver as nuvens como coelhos ou ursos e tentar fazer a vida dos outros melhores sem deixar esses pequenos momentos simplesmente passarem por nós.
“Oportunidades são como a corrida da França. Esperamos muito, depois ela passa rápido. Então, quando o momento chegar, é preciso pular o obstáculo sem exitar.”
Antes que confundam minha visão sobre um dos meus filmes favoritos com um texto de coaching, acho que podemos falar um pouco sobre o filme em si e não as sensações que ele transmite, apesar de não conseguir parar de pensar nelas.
Amélie Poulain é uma mulher que teve uma infância triste e solitária. Seu pai, que não a abraçava ou a beijava, apenas tocava nela quando ia checar sua saúde. Emocionada com o menor sinal de afeição dele, o coração de Amélie disparava, o que o fazia pensar que ela sempre estivesse doente. Sua mãe? Morreu tragicamente quando ela ainda era criança. Seu peixe? Tendências suicidas. E a partir disso, depois de achar o dono de uma caixinha velha e escondida, Amélie se sentiu tão realizada fazendo o bem, decidindo que seu propósito era levar felicidade para os outros.
Felicidade que a fotografia e a paleta de cores representam assim como a excentricidade do uso das câmeras que se movem a todo instante, mesmo durante alguns diálogos principais, onde o foco se encontra nas expressões das pessoas, procurando-as a todo instante. O uso constante de cores primárias e a tonalidade amarelada dos quadros trazem um calor que condiz esteticamente e sensorialmente de maneira perfeita com a sua história.
Em uma das cenas mais cativantes da história do cinema, Amélie, ao ver um homem cego prestes a atravessar a rua, chega ao seu lado e anuncia que vai ajudá-lo. Ao entrelaçar seu braço ao dele, ela começa a descrever tudo que esta acontecendo. Detalhes. Os cortes rápidos alternando entre as situações e os rostos de ambos passam uma euforia extremamente genuína pelo que acabou de acontecer.
Audrey Tautou proporciona uma das atuações mais irresistíveis e encantadoras da história. Charmosamente inocente, Audrey, com seus olhos extremamente expressivos, transita entre a jovem mulher que criou um mundo só seu como mecanismo de defesa e se sente confiante ali dentro, e a pessoa que é tomada pela falta de coragem ao se deparar com o menor sinal de amor, desacostumada a qualquer tipo de apego emocional e arriscando perder tudo por simples medo, pois estragar a própria vida é um direito inalienável. Acho que grande parte, se não todos nós, podemos nos identificar com isso.
Importante ressaltar que o relacionamento amoroso do filme é uma consequência da história de Amélie, e não algo que move ela. Outro motivo que deixa a história tão envolvente é a questão que a descoberta do amor é mais um acontecimento dentro do que o fabuloso destino de Amélie guarda pra ela.
Isso não muda o fato que o amor se faz presente entre ela e Nino. É através desses sinais de paixão que, também, percebe-se que é muito mais difícil ajudar os outros que a nós mesmos. Amélie, quando literalmente derrete de vergonha ou quando não consegue evitar que o seu coração quase saia do peito, representa a sensação dos imensuráveis românticos apaixonados espalhados pelo mundo, e na cena onde os dois oficialmente se encontram, o silêncio, por alguns instantes, toma conta do mundo frenético dela. Pronta para mergulhar em um mundo que não era só seu.
Esse é o ponto. Amélie, é uma personagem que representa a essência do melhor existente na vida, e o melhor de nós também é cheio de anseios, vergonhas, medos, alguns ossos de vidro e ansiedades sobre a passagem do tempo, que nos faz falar sobre esse tempo. Nossa essência é a nossa parte mais vulnerável e mesmo sabendo que são tempos difíceis para os sonhadores e que algumas pancadas da vida são inevitáveis há sim, tanto nela para se apreciar, pra se acreditar e para tentar mudar. A vida nunca é perfeita, cada um tem um jeito de acalmar os nervos.
O último comentário, depois desse parágrafo composto por frases presentes no filme, é que Amélie não se passa numa França real, ou num mundo real. É , dentro da melancolia de sua personagem principal, otimista demais e isso, na verdade, é mais um bônus do filme. Não passa no nosso mundo real mas nos mostra como podemos torná-lo. Um lugar melhor começando pelas pessoas.