Crítica | Django Livre

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Quando se fala em Quentin Tarantino, violência escatológica e extensos diálogos vêm à cabeça. A dúvida sobre qual dos dois é parte mais importante de seus filmes é combustível de diversos debates e análises, mas, ao meu ver, o que deveria definir tais debates é qual das qualidades de Tarantino como cineasta fala mais alto.

Quentin Tarantino, o roteirista ou Quentin Tarantino, o diretor? Afinal, qual dos dois faz com que o outro se torne ainda melhor?

Na sua versão blaxploitation de faroestes norte-americanos, o cineasta serve de maestro das muitas complexidades que tornam a história de seu protagonista Django em um de seus roteiros mais celebrados (lhe rendendo seu segundo Oscar de Melhor Roteiro Original, inclusive). Não que o núcleo central da narrativa não seja, naturalmente, digno de elogios: um escravo comprado por um caçador de recompensas para que o ajude a procurar homens de seu passado em troca de liberdade e de ajudá-lo a resgatar sua esposa, também escrava, das mãos de um dos mais sádicos mercadores da época. Porém, o que chama a atenção é como a trivialidade, tão amiga do diretor desde seus primeiros trabalhos, transforma essa história de vingança, busca e redenção em uma épica jornada pela cultura negra norte-americana.

Em se tratando de mundo, o longa se parece com “Bastardos Inglórios”, ao representar de forma exagerada e ficcional uma época, local e até pessoas que de fato existiram, desta vez trocando os nazistas pelos racistas e invertendo o lado de Christoph Waltz no processo. Mas não que o ator, ou que qualquer personagem em qualquer filme de Tarantino, possa ser chamado de bom, pois, por mais que não seja do feitio do cineasta nos fazer sentir por seus personagens (o que, de certa forma, impede este de subir mais alguns degraus em sua filmografia), é praticamente impossível não se ver fascinado pela complexidade que os tornam tão icônicos. Waltz, por exemplo, encarna Dr. King, o único branco da narrativa com qualquer senso de consciência (e propositalmente nomeado após Martin Luther King), mas não é, de forma alguma, o salvador caucasiano que corrompe filmes como “Histórias Cruzadas”, “Green Book” e “Lincoln” (para citar alguns recentes), mas sim um homem com as próprias motivações e que faz questão de ajudar Django apenas após que o mesmo o ajude, reforçando a ideia de que, em um filme de Tarantino, não há bondade, e sim algo próximo de funcionalidade.

Não que a relação entre ele e o personagem título, vivido por Jamie Foxx, não seja o mais próximo de amizade verdadeira em um filme do diretor desde… bem, ainda não assisti à “Era Uma Vez em Hollywood”, então… desde nunca. Ela é, inclusive, selada com um belo e singelo gesto de Django, ao passar um beijo à cabeça do homem que não apenas o libertou, mas que o acompanhou em uma jornada a qual não necessitava. E digo libertou em itálico, pois o papel de Waltz é necessário, também, para mostrar que naquela época era praticamente impossível que um escravo negro se salvasse sem ajuda (e é genial que Django se salve, mais ao final da projeção, sem a ajuda de ninguém) e isso, além dos motivos que evidenciei a cima, o transforma não em um herói branco e sim em um homem com o suficiente de dignidade.

Mas este não é o único personagem brilhante que Tarantino escreve aqui e, por mais que não consiga emular em Broomhilda a força de musas passadas - como Uma Thurman e Mélanie Laurent - a caracterizando apenas como uma donzela que deve ser salva, (de novo, representando a opressão do sistema à sua raça que a impossibilita de fazer qualquer coisa), o roteirista pincela dois dos melhores vilões de toda sua filmografia em Calvin e Stephen, ambos um marco na cultura popular após as eleições de 2016 nos Estados Unidos e 2018, no Brasil.

O primeiro, um homem sádico e explosivo, menos inteligente do que pensa ser e que acredita ser bom para seus escravos por lhes oferecer uma cumprida garrafa de cerveja após os mesmos matarem escravos adversários nas lutas de mandingo (que não são comprovadamente factuais). Você conhece bem, aquele que votaria no Obama uma terceira vez. O segundo, o retrato mais político já escrito por Tarantino, o negro que sucumbiu ao sistema e agora acredita que está junto à ele, sem ver que ainda é apenas uma enferrujada engrenagem.

Já Django, cujo nome fora baseado no personagem título do faroeste de mesmo nome, de 1966 (que apareceu em mais de 30 filmes desde então, nunca negro), entra facilmente para o já grande hall de marcantes heróis tarantianos que passam o filme inteiro sem fazer sequer uma boa ação. É curioso, inclusive, como ele, por pelo menos um momento, parece estar no mesmo caminho de Stephen, e não me surpreenderia se Tarantino, apaixonado por referências à cultura Pop, utilizasse a infame frase de OJ Simpson: Não sou negro, sou Django. Porém, note como no momento onde o mesmo cavalga ao lado de escravos que andam acorrentados há uma transição musical para um Rap (gênero relacionado à ascensão da cultura negra) de Rick Ross, composto especialmente para o filme, onde ele diz ter visto centenas de negros e negras morrerem e perceba como o refrão encaixa perfeitamente com a frase dita por Django ao ver uma das muitas crueldades impostas aos escravos, onde ele diz estar mais acostumado com a América que seu companheiro branco.

Ou seja, Django, apesar de estar exercendo um papel que detesta - o que fica claro após um sermão dado pelo personagem de Waltz, que Django responde de forma que percebemos seu avanço intelectual que, anteriormente, lhe fora proibido -, consegue suportá-lo, pois já viu muito daquilo e, afinal, sua amada vale a pena. Além disso, ao final, ele faz questão de “libertar” um grupo de escravos e de separar Stephen dos outros empregados na cena final, evidenciando a evolução do arco de seu personagem.

E, voltando agora para o tema que levantei no primeiro parágrafo, o excepcional roteiro de Tarantino que já é genial em história, mas mais ainda nos adereços que dá a esta, só poderia ser expresso com maestria graças à habilidade de Tarantino, o diretor, de visualizar suas obras como um todo. Em muitas cenas a construção de personagem está nos cantos da tela, em expressões faciais sutis, em movimentos reacionários. Os maneirismos que DiCaprio (que supostamente cortou a mão de verdade na cena mais agoniante do longa), brilhante como Calvin, encarna; a postura jubilante de Waltz, vencedor de um merecido Oscar de Melhor Ator Coadjuvante; os olhares torcidos dos capachos às ações e palavras de Django; a raiva que Foxx briga para manter contida e o desdém que seu personagem tem por toda aquela gente.

São coisas que não estão no roteiro, que vão além da mera interpretação, e funcionam diretamente com a sensibilidade do diretor em captar e não deixar passar nada que não seja importante.

Além disso, a cinematografia de Robert Richardson exibe uma paleta de cores áridas, mas levemente saturadas e com um grau de exposição elevado, que combina perfeitamente com o tom proposto pela narrativa e tem papel essencial em engrandecer Django (geralmente vestido em cores que contrastam com o cenário onde se encontra), funcionando em sinergia com muitas das excepcionais tomadas de Tarantino que enfatizam como sua figura é, de fato, heroica, desde como ele tira o casaco à como se porta em confronto ou cavalga em direção à seu objetivo (e o olhar de um dos escravos que antes parecia querer sua cabeça diz muito sobre a natureza do personagem). Perceba também como o filme tende a focar em tons de vermelho e magenta, cores que, impressas tanto nas roupas de Calvin como em sua casa, podem significar dentre muitas, duas coisas: como Django está próximo de sua paixão (Broomhilda) e como está próximo da violência ao mesmo tempo, intensificando subconscientemente os momentos de tensão. Isso alia as habilidades da direção e a beleza da cinematografia ao design de produção, que faz um ótimo trabalho de reconstruir a época com um quê do hiper estilo empregado por Tarantino.

É especial também como ele, novamente, encaixa muito bem uma mistura de James Brown e Tupac na cena final, um festim de violência estilizada à sua melhor maneira, com tiros impossíveis provocando erupções de sangue que nos fazem lembrar, após um filme recheado de conteúdo indigesto, que, para Tarantino, a violência pode ser o momento de maior leveza. Chame de obsessão, mas é uma habilidade clara dele em nos fazer dar risada ao ver psicopatas, estupradores, nazistas e, desta vez, racistas sendo destruídos pelo herói que construiu durante quase três horas.

Infelizmente, após re-assistir à este filme algumas vezes e tentar colocar em uma balança qual faceta de Tarantino se sobressai em relação a outra, percebi que entrei em uma discussão tão inútil quanto os que questionam seu apreço pela violência. Impresso, mais do que tudo em seu trabalho, está seu amor pelo cinema e, em Django, ele prova que pode dobrar gêneros à seu favor e ainda obter resultados esplêndidos. E termino esta crítica me utilizando de uma frase de Spike Lee, crítico do conteúdo do filme, e assino embaixo dizendo que não: a escravatura norte-americana não foi um faroeste spaghetti. Mas, assim como em “Bastardos Inglórios”, é estranhamente prazeroso ver alguém fazendo justiça com os responsáveis por ela.

o que faz de Django um personagem ainda mais glorioso.

9.5

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