Crítica | Wendigo (2001)
A Bruxa de Blair que deu certo?
Entre o folclore e o mundano, pequeno filme de horror mostra potencial de ressurgimento
Podemos dizer que A Bruxa de Blair (1999) foi um dos projetos estéticos mais retumbantes desses últimos 30 anos?
Filme que, ao mesmo tempo, radicaliza as possibilidades de se fazer cinema e relativiza as propriedades do cinema como forma de arte. Pois com a forma de arte, como meio, vem as convenções e os desenvolvimentos, as teorias e os movimentos, a concepção coletiva de algo que nasce, e morre, na experiência do indivíduo. Por um lado, temos um filme cuja ideia estética é o desnorte, o balanço da câmera, a técnica pedestre para simular a diegese. Por outro, temos um filme que se esconde por trás desses limites para não se articular cinematograficamente. De certa forma, um filme que desafia as convenções e as teorias. De outra, um filme que nem ao menos as reconhece.
O sucesso foi gigantesco, tanto financeiro como industrial: franquias nasceram (os Atividade Paranormal), sub-gêneros nasceram (cinema de desktop) e mesmo cineastas-autores adotaram a ideia (Shyamalan, A Visita). A retumbância, porém, não se limita à influência direta, mas se alastra para uma ideia imanente da imagem: todos com celular na mão, todos filmam, na maior parte do tempo, sem pensar para além do apontar.
Wendigo parece ser, de alguma forma, um Bruxa de Blair que ainda assimila a presença do cinema. Há um princípio de dramaturgia concatenado à narrativa, algo quase ausente do filme de 1999, não apenas uma premissa associada a uma pseudo-mitologia, mas um desenvolvimento dessa premissa por meio de interações devidamente cinematográficas. A maior evidência disso talvez resida no fato de que, mesmo eliminadas todas as cenas que fazem alusão à criatura, e o filme ainda se sustentaria.
Talvez fosse menos interessante, claro, pois se os princípios de drama familiar e a própria relação voyeur de inveja do vilão (o plano dele na janela une ambas as coisas) parecem elementos interessantes do filme é porque desde o início estamos esperando pelo sobrenatural. O mundano, assim, se torna o que entendemos pela substância que torna a narrativa mais do que apenas mais um conto de horror - substância que A Bruxa de Blair não possui. Curiosamente, excluindo Wendigo (uma figura mitológica real, e não concebida pelo diretor) da equação, minha sensação é de que veríamos um filme insosso, desagradável e cruel.
Estas coisas permanecem no corte oficial do filme, é claro, mas são de certa forma não bem abrandadas pela presença do sobrenatural, mas revalorizadas por ele. Se a criatura simboliza um mal absoluto e inevitável, as questões humanas parecem todas contornáveis, algo que Larry Fessenden conduz a partir das interações entre os atores e o espaços (se seguirmos com a comparação, A Bruxa de Blair era quase sobre a desinteração, a desintegração do espaço): a família chega a casa escura, o filho faz desenhos, o pai finge ser um monstro (duas vezes). Antes disso, o desentendimento na estrada, nosso medo humano de conflito, e como este escala para a paranoia, então associada à escuridão e ao isolamento da cabana.
Pegamos a cena onde Otis (o “verdadeiro” vilão do filme) observa o casal transando no sofá: em uma compreensão plural do espaço (o filho no quarto, o casal no sofá, o homem na janela), Fessenden elabora todas as principais tensões narrativas: a família tem problemas, mas os resolve com amor, enquanto ao homem solitário resta apenas o desgosto e a violência.
Há, evidentemente, um tema colonialista: é um velho nativo que entrega ao filho a estátua da criatura, e a própria casa que o casal aluga é, na verdade, propriedade de Otis. Quem invade quem, então?, o filme parece se perguntar, até que a aparição de Wendigo responde.
Não lembro onde li que “o barulho na cozinha à noite é sempre mais assustador do que aquilo que faz o barulho”, mas acredito que, mais frequentemente que não, o mostrar do mal no cinema é menos potente que o especular. O desconforto na cena da estrada, onde a câmera parece que não quer olhar diretamente para a situação, embora a circule de maneira quase obsessiva, me faz perguntar também: não seria o filme todo do ponto de vista de Wendigo? O próprio pôster, do guri correndo, parece sugerir isso. O que fortalece a ideia de invasão, enfraquece o mostrar da criatura e, nessa equação que seguirei refletindo, parece no momento fortalecer o próprio filme, que se permite recorrer a questões cinematográficas mesmo que passem por cima do dispositivo (de ponto de vista, de filme com orçamento de bolso).
Em algum lugar, ou de alguma forma, Wendigo é um A Bruxa de Blair feito por um cineasta.