Crítica | Vanisher, Horizon Scraper - Quadeca
A antítese de tudo
“There’s a man on the horizon
Paradise is just behind him
But if he turns around, it disappears”
Em fevereiro de 2025, Timothée Chalamet, ao receber o SAG Award por sua interpretação de Bob Dylan em A Complete Unknown, abandonou qualquer máscara de modéstia. No palco, assumiu sem pudor o que aquela conquista significava para ele. Foi um gesto raro: aversão à indiferença em rede mundial. O efeito, no entanto, foi paradoxal. Em vez de soar inspirador, gerou estranhamento, como se a busca pela grandeza artística tivesse se contaminado pelo discurso meritocrático que move a máquina capitalista.
O corte específico do discurso onde ele cita sua perseguição à excelência se deslocou da maioria das declarações desse tipo. Soou como algo que não se tratava da arte pela arte, ou do indivíduo para a arte (apesar de, para mim, isso ser algo implícito). Tal celebração da própria capacidade naturalmente ecoou negativamente em uma sociedade cada vez mais inerte - não como forma de rebeldia, mas sim representando uma derrota política, artística e criativa que tende a piorar.
Levando isso pra perspectiva musical, o efeito é mais corrosivo. O trabalho criativo do indivíduo como vetor principal de sua própria criação é cada vez mais diminuído e desvalorizado. O desinteresse em criar gera arte desinteressante, produzindo trabalhos artísticos concebidos cada vez mais de fora para dentro, como mais um produto mercadológico qualquer. A demanda, já pré-definida, molda o artista e o coloca em posição de xeque: criar se torna um movimento obrigatório, não para perseguir horizontes, mas apenas para adiar a morte simbólica.
Eis que um berimbau é a primeira coisa que escuto em uma música de Vanisher, Horizon Scraper. Nos créditos, pra minha surpresa, Chico Buarque listado como compositor, em razão do Sample de “Deus lhe Pague”. Não há uma motivação escondida nas sombras aqui, pois o público de Quadeca no Brasil é ínfimo. Conforme os 6 minutos da primeira faixa passam, No Questions Asked, ganha corpo de desfile, adquirindo vida a partir da desordem. O loop da melodia meditativa é a única coisa que não se entrega a imprevisibilidade, e a ida e vinda dos elementos é de uma aleatoriedade tão engajante que nem mesmo o ouvido mais desacreditado de quem ainda o chama de Rapper consegue se afastar.
E através dessa introdução folclórica que Quadeca começa a escrever seu próprio mito. Se Sisifus está fadado a tortuosamente empurrar uma pedra até o topo de uma montanha apenas para vê-la cair, Ben Lasky está fadado a navegar sozinho pelo oceano em busca de um horizonte que o promete o sol, subconscientemente motivado por sua própria autodestruição (So I might have to ruin my life to make it mine / Eu talvez tenha que arruinar minha vida para fazê-la dela minha - Ruin my Life).
Então, logo de cara, se percebe que a pessoa por trás do artista é uma contradição e confusão ambulante (como deve ser, certo?). Dúvidas permeiam a essência do seu ser e contestam todas suas decisões racionais. De dia alguém obstinado a tomar o controle de sua própria vida; a noite, outro eu absolutamente inconsolável em “Waging War” (travando a guerra), quando não consegue mais enxergar o horizonte que lhe entregava um propósito e que agora se confunde com uma ameaça - o mar abaixo dele.
A própria intersecção entre os versos é de uma diversidade instrumental que condiz com essa ondulação de sentimentos que cada vez mais vejo mais pessoas tentando se blindar. O piano semimacabro impulsionado pelas harmonias vocais que parecem anjos presos no lugar de assombrações trazem consigo a lembrança de respirar em momentos de tensão (é seu próprio conselho, na verdade, mas Quadeca, naquele momento, também é seu maior inimigo).
Porém, não há um auto julgamento, tampouco alguma evitação em se vulnerabilizar. Ele não é mártir, e renuncia ao que acredita a todo instante, entendendo que sua estabilidade vem de sua instabilidade. Essa é sua fé.
A pessoa que estava prestes a desistir de tudo durante a tempestuosa Waging War enche seus pulmões, abre mão de seu canto sussurrado e suplica para quem quer que ele esteja pensando não desistir numa segunda-feira de sol em Monday (provavelmente a música mais Pop do repertório de Quadeca). Os acordes lindos do piano encontram de forma delicada e apaixonada as cordas dos violões e dos violinos e a beleza da antítese humana ganha força (If i keep moving on, I’ll forget the way back; Se eu continuar andando pra frente, me esquecerei do caminho de volta).
(Pessoalizando por completo o texto por um breve momento, Monday mexeu comigo de uma maneira especial. Sei que a temática é navegar, e que o estranho barulho é oriundo de algo relacionado a barcos, mas no décimo segundo da música a mixagem expõe um som muito semelhante ao de uma corrente de bicicleta sendo pedalada pra trás. Quem pedala com marchas sabe que o movimento é inútil. Tal ato não freia, tão pouco da ré. Voltar dessa maneira é impossível, e a inércia, mesmo que queiramos retroceder, segue nos empurrando pra frente. Todo o contexto, toda roupagem instrumental, a letra, e esse momentinho que foi a cereja do bolo, me emocionou muito).
Se Monday representa o pedido mais humano e palpável do disco, Dancing Without Moving (contraditória em sua essência) é o reconhecimento da ausência de controle em um sentido quase divino de abstração. Se The Great Bakunawa, com os versos ácidos de Danny Brown e seu baixo sísmico que transformam a ameaça mundana e interna em uma criatura mítica de RPG, FORGONE - em uma mistura de Sigur Rós e folk - fomenta um medo mais palpável que a grande serpente lunar da faixa anterior.
A dificuldade em se perdoar por partir, machucando quem foi deixado pra trás, ecoa em cada final de estrofe, com Quadeca prestes a desabar a qualquer palavra. Em contraste com tal fragilidade, o lindo e triste piano é tocado de forma tão emocional e com tanta força que parece que suas teclas eventualmente vão quebrar no refrão.
Já numa provável aceitação da impossibilidade de alcançar seu destino e da lembrança da segurança que sentia quando seus pés ainda tocavam a areia, mesmo que ele saiba que não voltará como a mesma pessoa (And I can't return as the same), ou nem mesmo saiba onde seu barco irá ancorar (Where will it land in the end?), a única certeza é voltar e permanecer.
Na última e mais intensa faixa do álbum, Quadeca permite que cada centímetro da luz vinda do farol que o guia de volta para beira brilhe sobre a banda de rock experimental inglesa Maruja (isso só pode ter sido uma piada de muito bom gosto). Depois de toda densidade e ansiedade provocada pela faixa, os momentos finais nos deixam completamente claustrofóbicos e começamos a nos afogar junto com o navegador. Sem alcançar o horizonte, sem voltar a colocar os pés na areia e sem ninguém para ajudá-lo, a profecia de autodestruição do protagonista se concretiza a partir da liberdade de suas próprias escolhas e sua perseguição egocêntrica.
Porém, nos últimos segundos do disco, quando sua morte parecia óbvia, o barulho das ondas se torna estranhamente reconfortante. O que Quadeca faz aqui não é oferecer uma definição, dessa maneira afirmando que não existe resposta certa ou rota mais segura, mas sim insistir no instinto e na vulnerabilidade criativa e pessoal como linguagem.
Ao contrário da sensação que fica a partir do discurso meritocrático que exalta a excelência como destino final, Vanisher é a recusa dessa ilusão, mas a usa como meio para contar sua história. É um manifesto de que criar é um ato de sobrevivência, mesmo que em forma de autodestruição, e sempre mirando a excelência do que foi proposto, podendo significar coisas diferentes pra pessoas diferentes. Ben Lasky não vence sua guerra, não chega ao horizonte, não encontra seu porquê, mas é nesse fracasso que sua obra respira e ele renasce.
As ondas que tentaram lhe matar a pouco agora o acordam de forma gentil e o horizonte, que sempre será inalcançável, parece mais atrativo do que nunca.